Entrevista com o autor: Para uma anatomia da Crise

Postado por Mariana da Rocha em

O livro Para uma anatomia da crise é apresentado como um ensaio. Por que optou por esse formato?

O livro procura romper algumas das amarras do academicismo, apresentando, de modo panorâmico, uma visão alternativa sobre o problema do desenvolvimento e sua crise atual. Ele se beneficia de todo um conjunto de reflexões críticas, marcadas pela forte ênfase na historicidade da formação brasileira e nos dilemas colocados pela transnacionalização do capitalismo, no contexto que emerge após a Segunda Guerra Mundial. Nessa perspectiva, compreender as razões de fundo da regressão econômica e social que aflige o Brasil é condição indispensável para encontrar as soluções a esses mesmos problemas, contrapondo-se às teorias e políticas adotadas aprioristicamente e aos discursos mais ou menos explícitos de naturalização do capitalismo. A ideia não era fornecer um trabalho de cunho exaustivo, mas antes uma porta de entrada a um público mais amplo a todo esse debate, daí a opção pelo formato do ensaio.

De que modo você entende a especificidade da crise à que o título faz referência?

A crise do desenvolvimento é vista como sendo de natureza estrutural, própria da configuração do capitalismo em seu momento histórico atual, e que se manifesta de forma específica na periferia latino-americana e no Brasil, em particular. Nesse sentido, nossa visão procura se contrapor aos vários tipos de interpretações que subestimam o sentido e a profundidade da crise, especialmente a regressão brasileira, que mais nos interessa. Buscamos fugir das visões economicistas, da crise vista como momento do movimento cíclico da economia ou como crise de acumulação; mas também daquelas que imputam a reversão estrutural meramente a políticas equivocadas e governos ineptos, neoliberais e conservadores, como se estes fossem antes causa do que parte do contexto da crise estrutural. O corolário dessas visões é o de que a reversão é reversível, daí a proposição de noções como a de reindustrialização, de reconstrução do Brasil ou de uma “construção retomada” – em contraposição ao significativo título de uma das obras de Celso Furtado, Brasil: a construção interrompida. Esse tipo de perspectiva abre caminho para alguma forma de reciclagem do keynesianismo e do desenvolvimentismo, ignorando ou subestimando as condições históricas que tornam essas saídas inexequíveis ou, no mais otimista dos cenários, meros paliativos que não atuam sobre as raízes do problema.

Qual o sentido geral da noção de desenvolvimento abordada no livro?

Aqui o desenvolvimento é entendido, antes de tudo, em seu caráter histórico. Ele não é produto natural do capitalismo, não resultando nem de uma suposta livre operação das forças do mercado, nem de políticas orientadas para o mero estímulo da demanda agregada. O desenvolvimento envolve processos significativos de reconstrução social, correspondendo, nos marcos do capitalismo, às situações em que determinadas sociedades nacionais lograram subordinar a acumulação de capital a desígnios sociais, permitindo a tais sociedades nacionais acessar as benesses materiais e culturais da civilização industrial. Historicamente, trata-se das nações formadas pela concretização das revoluções burguesas e da revolução industrial. Nesses termos, capitalismo, soberania, democracia e bem-estar social puderam ser relativa e temporariamente conciliados. Esse desenvolvimento nacional pressupunha a formação de Estados nacionais e de sistemas econômicos nacionais, tendo a industrialização como sua espinha dorsal. Assim, o desenvolvimento é visto como um processo nacional, pois depende do poder político centralizado e organizado em bases nacionais para subordinar a acumulação capitalista às necessidades de cada sociedade nacional específica. Só é importante evitar a idealização desse desenvolvimento, lembrando que esses mesmos processos históricos desembocaram no advento do imperialismo, consolidando um grupo restrito de potências industriais e aprofundando as assimetrias internacionais, entre centro e periferia, ao mesmo tempo que reproduzia internamente as desigualdades e contradições inerentes à sociedade de classes e à existência do capital. Sendo histórico, o próprio desenvolvimento, nos marcos do capitalismo, mostrava-se transitório.

Em que consiste a crise do desenvolvimento?

Essa crise resulta das transformações no sistema capitalista mundial a partir do pós-guerra, com o fortalecimento e avanço das empresas transnacionais, sob a batuta da potência capitalista hegemônica, os Estados Unidos, com seu projeto imperial, amparado no poderio militar e do dólar. Nas décadas subsequentes, as tendências resultantes da nova fase de internacionalização do capital, com a internacionalização das atividades produtivas e a formação de um sistema financeiro internacional, processos liderados pelas empresas transnacionais, vieram comprometer a existência de sistemas econômicos nacionais relativamente autônomos. O reforço do poder e da mobilidade do grande capital, atuando em um espaço cada vez mais transnacionalizado e sob uma lógica que tende a diluir os espaços econômicos nacionais, ao mesmo tempo que esvazia o caráter minimamente público da ação do Estado, rompe as premissas do desenvolvimento nacional, que estava assentado na possibilidade, em alguma medida, de controlar a acumulação capitalista de modo a compatibilizá-la com prioridades nacionalmente definidas. Com o avanço da transnacionalização do capitalismo, as sociedades nacionais foram perdendo a capacidade de impor alguns controles ao capital, tornando-o provisoriamente compatível com um horizonte civilizatório. Quanto mais se afirma essa incontrolabilidade estrutural, mais tendem a se afirmar a lógica dos negócios e o caráter predatório e espoliativo do capital internacional, negando as necessidades humanas socialmente definidas e ameaçando as próprias condições de vida no planeta. Assim, a crise do desenvolvimento nada mais é que uma face da crise estrutural do capital, nos termos do filósofo húngaro István Mészáros.

Nesse contexto, como entender a crise brasileira? De que forma ela se distingue?

Para nós, da periferia latino-americana do sistema capitalista, a crise se manifesta como processo de reversão neocolonial. A crise brasileira, enquanto tal, não é episódica ou conjuntural, mas corresponde à própria crise da formação nacional, como resultado do agravamento dos impactos desarticuladores da transnacionalização do capitalismo sobre uma sociedade que nunca rompeu completamente com as estruturas legadas pelo colonialismo e pelo escravismo, nem superou a dependência e o subdesenvolvimento. Ao contrário dos entusiastas da industrialização brasileira, sobretudo a partir do Plano de Metas de JK, que acreditavam que as bases para o desenvolvimento já estavam dadas, reflexões de vulto como as de Caio Prado Júnior, Florestan Fernandes e Celso Furtado já alertavam para os riscos de um processo que se apoiara em crescente subordinação ao capital internacional. Isso significava que esse perfil de industrialização não contribuía para a integração nacional, pelo contrário, comprometendo-se a capacidade de controle e no limite a própria continuidade do processo, dado que dependente das decisões de empresas transnacionais cujas operações transcendiam os espaços nacionais. Subordinadas a uma nova dependência, as sociedades periféricas se veem sofrendo de intensos processos de desarticulação e regressão econômica e social, que solapam as tendências históricas de formação de sociedades nacionais, revertendo as mínimas conquistas civilizatórias e revigorando os traços da economia de tipo colonial e a posição subalterna na economia mundial. Face a uma burguesia débil e oportunista, a inserção no capitalismo global depende cada vez mais de formas de superexploração da força de trabalho e dos recursos naturais, assim como do Estado fiador que assegura a valorização do grande capital à base da espoliação do povo brasileiro, reafirmando o caráter particularmente opressivo da dominação burguesa na periferia do sistema.


Prof. Dr. João Paulo de Toledo Camargo Hadler (UFRRJ)