Confira a entrevista com Leandro Galastri, autor de Leituras gramscianas: História, política e classes sociais
LAC - Por que estudar Gramsci na atualidade?
Galastri - Todas as grandes questões civilizatórias contemporâneas requerem a crítica ao modo de produção capitalista, desde a crise ambiental até a possibilidade de uma hecatombe nuclear. Nesse sentido, Gramsci é um dos mais ricos pensadores a viabilizar um marxismo do século XXI. Uma sociedade cuja produção material e simbólica ocorre em função da criação e da concentração acelerada de lucros não consegue pensar em valores e interesses coletivos. O capital necessita de expansão, reprodução e concentração permanentes. Dessa forma, é incapaz, por natureza, de botar um freio na devastação florestal em busca de novas terras e minerais, bem como de interromper a corrida imperialista que arrisca colocar um fim na vida humana (e talvez em qualquer tipo de vida) pelo uso de armas de destruição em massa. Para cultivar a aparência de legitimidade, o capitalismo se utiliza de recursos políticos e ideológicos de convencimento permanente, ainda que parcial, da sociedade. Isso constitui sua hegemonia. Então, esse conceito gramsciano, por exemplo, já é importantíssimo para podermos desvelar as metamorfoses da exploração capitalista e organizarmos formas de luta e resistência por uma nova hegemonia. Esta deverá ser a hegemonia dos trabalhadores associados, da produção material e cultural voltada para os interesses e necessidades humanas, agora livres da coerção dos lucros e da propriedade privada, e sua forma política deverá eliminar a diferença entre dirigentes e dirigidos, governantes e governados.
LAC - Gramsci parece ser bastante estudado no Brasil. Como isso tem ajudado na luta anticapitalista aqui?
Galastri - Sim, Gramsci é o pensador marxista mais estudado no Brasil. Talvez por isso seja, também, o mais atacado pela extrema direita. De acordo essa direita fascista, uma suposta dominação da “ideologia gramscista (sic) ” precisaria ser eliminada dos meios científicos, culturais e escolares brasileiros. Não é por acaso que essas três dimensões da vida nacional quase viraram terra arrasada pelo criminoso mandato presidencial passado e por sua malta de gente reacionária ignorante, incompetente e vagabunda. No entanto - longe de ser hegemônico em qualquer ambiente institucional, aliás - o pensamento gramsciano tem, de fato, ajudado a construir a resistência e as lutas populares no Brasil, e isso já vem de décadas. Líderes populares e intelectuais dentro e fora da universidade exercem papel importantíssimo na difusão das ideias e propostas de Gramsci para a luta anticapitalista nacional. Dessa forma, o pensamento de Gramsci está presente nas lutas por reforma agrária, por moradia, em defesa do meio ambiente, nas lutas operárias e estudantis e contra todas as formas de opressão. Conceitos como hegemonia, grupos subalternos, guerra de posição e de movimento, transformismo, grande e pequena política, Estado Integral e as propostas que tais conceitos inspiram perpassam os programas, teses, discursos e práticas da luta popular e dos partidos de esquerda no Brasil. Claro que a luta não é fácil, como podemos obviamente constatar em nossa história, e muitos avanços são necessários em termos práticos e teóricos. Mas, sem Gramsci, estaríamos ainda em pior situação.
LAC - O que temos de Gramsci em português, no Brasil?
Galastri - A principal obra em português é a tradução dos Cadernos do Cárcere em seis volumes, bem como a correspondência de Gramsci no período da prisão (1926-1937) e parte de seus escritos políticos (uma seleção deles do período entre 1910 e 1926). Apesar dos Cadernos em português não estarem completos – faltam os “rascunhos”, que também são muito importantes na pesquisa sobre seu pensamento -, esse material é o que temos de mais abrangente no Brasil e eu diria que é suficiente para se conhecer bem o pensamento de Gramsci, o que devemos a Carlos Nelson Coutinho, que coordenou todo esse trabalho de tradução. Claro que, para fins de pesquisa científica rigorosa, é necessário ter acesso também aos tais “rascunhos”, o que só é possível consultando a obra completa no idioma italiano, os Quaderni del Carcere. Esses foram editados na Itália a partir dos originais manuscritos de Gramsci, por Valentino Gerratana, no início da década de 1970. Mas eu gostaria de ressaltar que uma tradução dos Quaderni editados por Gerratana, - em sua totalidade - para o português está sendo preparada no Brasil por uma equipe de pesquisadores da International Gramsci Society nacional. Além disso, a editora Boitempo tem publicado volumes com alguns textos pré-carcerários que ainda estavam inéditos em português. De resto, é importante lembrar que uma nova edição italiana de toda a obra de Gramsci está sendo preparada lá e a principal novidade são textos pré-carcerários (artigos políticos e cartas) inéditos até hoje. Trata-se da Edizione Nazionale, que já tem seus primeiros volumes. Em todo caso, ainda é de acesso bastante restrito fora da Itália.
LAC - Existem discordâncias importantes na forma de se ler Gramsci no Brasil, certo? Além disso, ele é estudado também por pesquisadores não marxistas. Afinal, existe uma leitura correta de Gramsci?
Galastri - Bom, de fato, como acontece com qualquer pensador da envergadura de Gramsci, existem diferenças de leitura e interpretação de suas ideias e conceitos. Algumas diferenças são sutis, outras são mais radicais, mas eu acho que o que mais importa em relação à leitura de qualquer autor é não perder de vista seus pressupostos filosóficos. Ora, Gramsci é marxista, é revolucionário. Não faz sentido expurgar da leitura de seus textos os pressupostos do materialismo histórico, da dialética marxista, da luta de classes, da ação revolucionária, em suma, do que o próprio Gramsci chamou de filosofia da práxis. Gramsci – o Gramsci que conhecemos até hoje - não se reconheceria em causas que querem “aprofundar a democracia”, “democratizar a sociedade civil”, ou seja, reformar ou “humanizar” o capitalismo. Gramsci é comunista. Leituras que se esforçam por ignorar os pressupostos filosóficos do que Gramsci escreveu não fazem senão distorcer seu pensamento, simples assim. São leituras interessadas na pequena política, que querem construir um Gramsci domesticado, digerível ao capital. Ninguém pode impedir que leituras liberais se inspirem em termos gramscianos e modifiquem seu significado original. O que não é honesto é fazer isso reivindicando o próprio Gramsci.
LAC – E sobre seu livro?
Galastri – Quero agradecer à Lutas Anticapital pela oportunidade de publicá-lo. A produção gramsciana no Brasil é farta e de qualidade (tanto é assim que já estamos “exportando”, invertendo o fluxo das traduções “de fora para dentro”; neste ano mesmo já foi lançada na Itália uma edição com textos apenas de pesquisadores brasileiros, o volume Gramsci in Brasile, que conta com lançamento por aqui ainda esse mês). A Lutas Anticapital segue colaborando, assim também, com a circulação brasileira das ideias gramscianas. O meu livro é resultado de anos de pesquisa sobre a obra de Gramsci e considero que contém alguma contribuição – por modesta que seja – aos estudos gramscianos no Brasil. Nele, procuro aplicar minha interpretação dos conceitos gramscianos para refletir sobre questões relacionadas sobretudo à história, à política e às classes sociais, como consta no próprio subtítulo. Passo pela discussão sobre os conceitos de estrutura e superestrutura, do jacobinismo, da revolução passiva, do fordismo e a questão sexual, dos grupos subalternos e da violência política em Gramsci. Procuro também abordar autores como Poulantzas e Althusser numa perspectiva gramsciana. Encerro com uma reflexão sobre a metodologia para uma historiografia dos subalternos, que envolve autores como Daniel Bensaïd, Edward Saïd e Giorgio Baratta. Por fim, muito me honra a atenção dispensada por Marcos Del Roio à sua leitura, demonstrada no generoso prefácio escrito por ele.