Confira a entrevista de Caio Andrade, sobre seu livro A ofensiva burguesa na educação

Postado por Mariana da Rocha em

Entrevista com Caio Andrade, autor do livro A ofensiva burguesa na educação

 

A editora Lutas Anticapital traz a público, em 2022, o livro A ofensiva burguesa na educação: do enfrentamento à implementação do projeto empresarial pelo PT, de autoria do professor e militante comunista Caio Andrade. Como trabalhador da educação pública há mais de uma década, ex-dirigente sindical e mestre em Serviço Social pela UFRJ, o autor aliou a experiência no chão da escola e nas lutas da sua categoria com a reflexão teórica marxista. O resultado apresentado aos leitores é uma análise a respeito do avanço do capital sobre a política educacional brasileira, processo no qual a metamorfose petista foi essencial. Confira a entrevista realizada pelo educador popular Silvio Santana.

 

Sílvio Santana – Professor, antes de tudo, parabéns pelo livro, é, sem dúvida, uma leitura imprescindível. A obra é fruto de uma pesquisa desenvolvida ao longo do seu curso de mestrado, na qual você se vale das contribuições de Karl Marx e da tradição marxista para problematizar a educação. Um aspecto importante nessa questão é que o livro se apresenta como uma síntese histórica das crises e contradições do capitalismo. Fale sobre a relação entre a crise do capital e a educação.

Caio Andrade – De fato, na análise que procuramos fazer sobre as transformações da educação no Brasil contemporâneo, nós partimos da premissa de que a crise do capital é um elemento essencial no pano de fundo desse processo. A partir daí é possível discutir o contexto do problema, que é um contexto de mudanças no padrão de acumulação capitalista. Efetivamente, o conceito de crise é um conceito-chave nesse debate. Por isso, a primeira parte do livro foi dedicada a recuperar o debate marxista sobre as crises. Há uma ideia de crise cíclica – e nesse sentido é importante perceber que desde a época na qual Marx escreveu O Capital até os dias atuais houve um encurtamento significativo do intervalo entre as crises.

Mas para além das crises cíclicas, há certas crises mais profundas, que se destacam, como a crise iniciada nos anos 1970. Alguns autores, como Mészáros, caracterizam esse fenômeno como uma crise estrutural. Não significa que o capitalismo esteja caminhando para acabar do dia para a noite, mas é notável, por exemplo, que entre uma recessão econômica e outra, a retomada do crescimento ocorre em patamares cada vez mais baixos.

Edmilson Costa, por sua vez, discutindo a noção de crise sistêmica, aponta a reconfiguração do Estado e das formas de organização da produção para atender as necessidades do capital. Para o autor, porém, a crise dos anos 1970, ao contrário de 1929 e 2008, não foi uma crise sistêmica. De todo modo, muitos autores falam em reestruturação produtiva a partir da década de 1970. Inspirado na escola da regulação francesa, David Harvey analisa a transição do fordismo para o que ele chama de padrão de acumulação flexível. São reflexões importantes, pois tratam de como a burguesia apresentou e apresenta respostas aos desafios impostos pela luta de classe.

A ofensiva burguesa no mundo ao final do século XX ocorreu em diversas trincheiras, sobretudo na indústria, mas em determinado momento ela também chega na educação. Essa ofensiva, que ficou conhecida como neoliberalismo, trouxe grandes impactos para os serviços públicos em inúmeros países, dentre os quais se inclui o Brasil. Quando o Partido dos Trabalhadores surgiu, no início dos anos 1980, ele tinha um programa anticapitalista para a educação – e eu procurei provar isso no livro através da análise dos documentos históricos aprovados nos encontros e congressos nacionais do partido.

Porém, como já havia demonstrado Mauro Iasi, o PT passou por uma metamorfose, de modo que na virada dos anos 1980 para os anos 1990 já era evidente uma inflexão política na perspectiva da acomodação à ordem do capital. Ou seja, muito antes da “Carta aos Brasileiros” e da vitória de Lula nas eleições de 2002 era possível identificar um recuo no enfrentamento à mercantilização da educação pública, uma guinada que afastava o PT das lutas anticapitalistas na educação como um todo. Com a chegada do PT no governo federal, essas contradições são elevadas a um novo patamar.

Sílvio Santana – O livro versa sobre a educação e o neoliberalismo a partir da década de 1980/1990, mas há uma atenção especial ao PT, suas contradições, incoerências e conflitos. Seu texto aponta uma aliança entre o PT e a burguesia, de modo que o eixo dos governos petistas não conduziu à ruptura com as teses do projeto neoliberal. Lula e Dilma inauguraram uma nova fase do neoliberalismo no Brasil?

Caio Andrade – É o que Rodrigo Castelo e outros chamam de social-liberalismo. Comparando com a tendência global, o neoliberalismo demorou a se consolidar no Brasil. Em meados da década de 1970, enquanto Pinochet inaugurava a agenda neoliberal a partir do golpe realizado no Chile, o “milagre econômico” da ditadura chegava ao fim no Brasil, ampliando o desgaste do governo e abrindo caminho para o fortalecimento das lutas sindicais, populares e estudantis. Assim, nos anos 1980, a correlação de forças na sociedade brasileira possibilitou não apenas a retirada dos militares do primeiro plano da política, mas também, de certa forma, o adiamento dos “ajustes” preconizados no chamado Consenso de Washington.

A derrota de Lula nas eleições de 1989 e, no âmbito internacional, a derrubada da União Soviética, ocorrida cerca de dois anos depois, marcam um novo período de refluxo da classe trabalhadora na cena política. É por isso que, no Brasil, houve um avanço acelerado do neoliberalismo a partir de então, com impactos brutais na educação. O receituário do Banco Mundial foi sendo cada vez mais incorporado nas políticas educacionais.

É conhecida a grande influência que o Departamento de Estado dos Estados Unidos teve na educação brasileira ao longo da ditadura empresarial-militar. O que a gente percebe, porém, é que mesmo em um período de democracia (burguesa), o Banco Mundial virou uma espécie de Ministério Mundial da Educação e o Brasil, seguindo a tendência dos demais países dependentes, continua submetido à cartilha ditada pelo capitalismo central. É muito importante discutir isso, para além de quem operou essas políticas no varejo dos governos.

Eu estou entre aqueles que acreditam que a experiência social-liberal petista tem sim diferenças importantes em relação aos governos anteriores, mas, a rigor, não houve ruptura com os fundamentos macroeconômicos neoliberais. As ambiguidades da estratégia democrático-popular também se expressam na educação, área na qual houve aspectos positivos, como a expansão das universidades e institutos federais, a lei do piso nacional do magistério, a lei de cotas etc., caminhando lado a lado de coisas como a desarticulação dos movimentos de luta pela educação pública; ampliação significativa da participação do Banco Mundial na política educacional brasileira; o descumprimento da Lei do Piso em inúmeras prefeituras e governos estaduais do próprio PT; a destinação de rios de dinheiro público para faculdades privadas de qualidade duvidosa; a certificação em massa; a enorme presença do Movimento Todos Pela Educação dentro do MEC; ampliação de cursos pagos e “parcerias” entre universidades e empresas; o fortalecimento da ideologia meritocrática, das avaliações externas, do gerencialismo... Sempre acho importante lembrar que, entre 2000 e 2010, as vagas nas instituições públicas de ensino superior quase dobraram, mas nas IES particulares, as vagas quase triplicaram! Essa é a natureza do milagre educacional lulista.

Sílvio Santana – Na sua opinião a educação é o alvo preferencial do neoliberalismo?

Caio Andrade – É um deles. O neoliberalismo é uma fase do capitalismo marcada pela financeirização da economia e por uma ofensiva imperialista, chamada de globalização. Tal ofensiva é impulsionada pelo aumento da mobilidade do capital. Ao mesmo tempo, crescem as barreiras para a mobilidade do trabalho, o que aprofunda as desigualdades no mundo. Além disso, em busca da manutenção das suas taxas de lucro, os capitalistas precisam expandir as fronteiras da mercantilização, não apenas do ponto de vista geográfico, mas também penetrando em áreas e atividades que ainda estavam relativamente livres da sua intervenção. É assim com a natureza, os direitos sociais, os bens e serviços públicos, por exemplo, onde se inclui a educação.

Porém, para os capitalistas, a educação não se restringe a uma área de negócios, é também um terreno fundamental da luta ideológica, da disputa de corações e mentes. Hoje, por exemplo, a contrarreforma do ensino médio consolida o discurso do empreendedorismo como uma das principais armas da ideologia dominante contra a juventude. Em um país com dezenas de milhões de desempregados, isso não é qualquer coisa.

Sílvio Santana – E como você avalia a educação sob o governo Bolsonaro?

Caio Andrade – O desfinanciamento da educação é um dos aspectos mais graves do governo Bolsonaro. Não se pode esquecer que Dilma já havia realizado grandes cortes no orçamento do MEC antes de sofrer um golpe parlamentar. Contudo, é evidente que nada se compara a Bolsonaro. Há dez anos os investimentos em educação representavam 21% do orçamento. Com Bolsonaro isso despencou para 8%. O mais perverso é que essa agressão orçamentária foi operada em meio à pandemia, quando mais se precisava aumentar, em vez de diminuir, as verbas da pasta. Enquanto isso, o Ministério da Defesa saltou de 15% do orçamento em 2012 para 19% em 2022, com 22 bilhões de reais. As prioridades são as próteses penianas da Marinha, o Viagra, o leite condensado etc.

A atual linha do Ministério da Educação é simplesmente atacar e destruir o sistema que existe, substituir a escola pelo “ensino domiciliar” e eliminar qualquer espaço para a razão, o conhecimento, a crítica social. Já foram cinco ministros e é difícil dizer qual foi o pior. Para os fascistas, só existe um objetivo à frente de qualquer instituição ligada à educação: avançar na “guerra cultural”, perseguir seus inimigos, difundir suas imbecilidades anticomunistas. Aliás, esse não é o único objetivo. Tem outro: ganhar dinheiro, mais especificamente, barras de ouro...

Infelizmente, a burguesia brasileira está confortável em relação a tudo isso, porque seu projeto já está consolidado. Já tinha sido aprovada uma Base Nacional Comum Curricular que facilita a produção e a circulação de pacotes didáticos, bem como o Ensino à Distância e as plataformas educacionais digitais; está sendo implementada uma reforma do ensino médio que reduz de 2400 para 1800 horas a carga horária das disciplinas obrigatórias, afetando duramente o ensino de História, Geografia, Sociologia e Filosofia enquanto o se enfia Empreendedorismo nas escolas; o Plano Nacional de Educação está cheio de pressupostos gerencialistas; via de regra, não existe gestão democrática na educação básica, as escolas são depósitos de adolescentes, os trabalhadores da educação continuam desvalorizados.

Sílvio Santana – Professor, uma última questão: lutar contra os retrocessos na educação é missão não apenas dos profissionais da área, mas de toda a sociedade?

Caio Andrade – Com certeza. Veja, a burguesia nunca abriu mão de apresentar seu projeto de educação como se fosse o projeto de toda a sociedade. No século XIX, a educação na Europa, por exemplo, foi usada para construir nacionalismos muito úteis à medida que se intensificavam as rivalidades interimperialistas. Em outras palavras, a escola ajudava a formar “cidadãos dispostos a lutar pelo país”. Na Guerra Fria, a educação burguesa participou ativamente dos esforços contrarrevolucionários, na contenção do socialismo e nas perspectivas de “integração” à sociedade capitalista. A partir do neoliberalismo e da naturalização do desemprego, a integração dá lugar à competição. Ou seja, não tem empregos para todos e não vai ter, portanto você precisa se preparar para competir, para estar entre aqueles que conseguirão um lugar no mercado. E se você fracassar, a culpa é sua, que não soube investir em si mesmo, ser competente, ganhar dos adversários ou empreender da forma certa. Então, assim como a burguesia tem seus projetos de educação, nós trabalhadores precisamos ter o nosso. Eu estou convencido de que o marxismo-leninismo é imprescindível nessa tarefa.

 

Caio Andrade é professor da rede estadual do Rio de Janeiro e da rede municipal de Teresópolis, além de membro da diretoria da Fundação Dinarco Reis. Graduado em Geografia pela UERJ, mestre em Serviço Social pela UFRJ e doutorando do Programa de Pós-Graduação em Geografia da UERJ.

Autor do livro “A ofensiva burguesa na educação: do enfrentamento à implementação do projeto empresarial pelo PT”, editora Lutas Anticapital.

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