Confira a entrevista de Isabel Mansur sobre seu novo livro: Corda bamba: o lulismo como metamorfose e realização da estratégia democrático-popular

Postado por Mariana da Rocha em

Entrevista com a cientista social Isabel Mansur, autora do livro Corda bamba: o lulismo como metamorfose e realização da estratégia democrático-popular

 

A editora Lutas Anticapital acaba de lançar a obra Corda bamba: o lulismo como metamorfose e realização da estratégia democrático-popular, de Isabel Mansur.

Prefaciado por Sara Granemann e com orelha de Virgínia Fontes, o livro remonta o surgimento do lulismo e faz um balanço sobre o conceito. Com isso, a editora dá continuidade à coleção Revolução Brasileira em Debate, que abarca controvérsias teóricas, estratégicas e táticas das lutas de classes, no Brasil, na sua atualidade. A Lutas Anticapital conversou com a autora sobre Lula, estratégia, desenvolvimento do capitalismo, reformas e revolução. Confira!

 

Fale um pouco sobre sua trajetória acadêmica.

 

Me chamo Isabel Mansur, sou cientista social e doutora em Serviço Social pela UFRJ. Durante o doutorado fiz estágio-sanduíche na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris, França, sob a supervisão do professor Michael Lowy. Atualmente, faço pós-doutorado também no Serviço Social da UFRJ. Meu orientador de doutorado foi o professor Mauro Iasi, e a minha supervisora no pós-doutorado é a professora Ivanete Boschetti.

 

Agora que sabemos um pouco mais sobre a autora, falemos sobre o livro. De onde veio a ideia?

 

O Corda bamba é meu primeiro livro, de fato. Antes, já tinha participado de coletâneas de artigos, como coautora e coorganizadora. Mas o Corda bamba é meu primeiro voo solo, resultado da minha pesquisa de doutorado. Ele faz parte de uma trilogia, em que pretendo externalizar o estudo que se materializou na minha tese de doutorado A estratégia democrática e popular do Partido dos Trabalhadores (PT) e a questão da incompletude do capitalismo no Brasil. Os próximos dois volumes da trilogia vão ser sobre estratégia e sobre os principais teóricos da revolução brasileira, dos clássicos aos contemporâneos.

 

Por que Corda bamba?

 

É uma referência à música de Aldir Blanc e João Bosco, O bêbado e a equilibrista, música também conhecida como Hino da Anistia, em referência histórica ao processo de recuperação dos direitos políticos suprimidos pela ditadura civil, empresarial e militar. Quem não lembra dos versos: “A esperança dança / Na corda bamba / De sombrinha”? A principal inspiração do Corda bamba é a trajetória do PT, um partido da classe trabalhadora que, no momento em que a música vira um hino, dava os seus primeiros passos. O bêbado da música é uma referência a Carlitos, personagem de Charles Chaplin, que representa a classe trabalhadora em sua clássica e extraordinária película. Já a equilibrista, a esperança, anda em caminhos tênues e num período histórico tortuoso, mas precisa continuar. A partir desse campo simbólico, escolhemos o título do livro.

 

E como o Lula entra nesse contexto?

 

A música, que começa em meio a tragédias e tristezas, passa uma mensagem final de esperança, apesar das contradições. Acho essa imagem bastante simbólica para falarmos sobre a realidade brasileira e, em particular, sobre a trajetória do PT e do lulismo, o mais importante partido da esquerda brasileira e a sua mais importante expressão pública, Luiz Inácio Lula da Silva. Recentemente, conversando com uma amiga sobre o livro, ela me afirmou: “A corda bamba é o Estado”. E eu respondi: “Sim, também”. Cada leitor vai interpretar o termo corda bamba de acordo com suas leituras e inquietações, com seus próprios passos. É o caminho do processo histórico, que nunca é linear, mas sempre cheio de contradições e agruras.

 

Explique, para o público em geral, o subtítulo o lulismo como metamorfose e realização da estratégia democrático-popular.

 

As contradições são parte fundamental da história. Não existe história sem contradição, não existe política sem contradição. Essa é a única maneira de entendermos essa unidade de contrários: como algo pode ser metamorfose e, ao mesmo tempo, realização? O que uma metamorfose pode trazer de mudança e de continuidade, ao mesmo tempo, e ainda assim significar uma superação? O lulismo, que muitas vezes aparece como o ponto de chegada do processo de transformação da estratégia petista, pode ser encontrado ao longo do movimento de transformação da estratégia. O lulismo é, na verdade, um resultado dessas metamorfoses. É esse movimento que acompanhamos no livro, a partir das resoluções de encontros nacionais e congressos do PT, até a chegada de Lula à Presidência da República.

 

O Corda fala sobre a estratégia petista. Como você definiria estratégia?

 

Antes de definir estratégia, há algo importante a ressaltar. No livro, pretendemos realizar um balanço crítico do percurso do PT, a partir de um olhar sobre a trajetória política da classe trabalhadora brasileira, expressa em sua estratégia. Ou seja, não estamos falando da estratégia em geral ou, simplesmente, da acepção militar do termo. Estamos falando da estratégia no sentido de um movimento que busca a superação do capitalismo. Dito isso, estratégia determina um movimento amplo, um planejamento de longo prazo e está ligada ao rumo das ações, ao seu objetivo final. Há elementos imbricados na estratégia: a via, as táticas, o sujeito, o programa, a teoria, o objetivo estratégico, o ritmo e o encadeamento das tarefas. Toda estratégia é uma síntese desses elementos, que podem se alterar singularmente e que, se modificando, modificam a estratégia. No que diz respeito à estratégia democrático-popular, há duas premissas consolidadas no próprio nome: a via democrática e o protagonismo da classe trabalhadora.

 

Quais são as semelhanças da estratégia petista com a estratégia dominante na esquerda, anteriormente?

 

Ainda que o PT tenha se diferenciado da estratégia do PCB desde seus primeiros passos, no desenrolar do processo histórico algumas das premissas fundamentais parecem coincidir com as do projeto petista. Tal aproximação se deve fundamentalmente à natureza e às tarefas da revolução, além de um tipo sui generis de interpretação do capitalismo e da revolução burguesa brasileira. Esse desenrolar pautará a metamorfose da estratégia do PT da década de 1980 – que apresentava uma síntese rupturista – para aquela da década de 1990, baseada numa concepção de democratização progressiva, gradualista e pacífica, por sua vez já bastante próxima à versão eurocomunista da estratégia gramsciana e da versão da estratégia democrático-nacional sintetizada na Declaração de Março de 1958 do PCB. Nesse sentido, autoriza-se afirmar que há uma alteração na forma da estratégia, mas não na natureza e no conteúdo democrático-nacional que ela se propunha a cumprir.

 

Isso tem a ver com a ideia de um capitalismo brasileiro incompleto, a ser desenvolvido?

 

A questão da incompletude do capitalismo no Brasil é um conceito que desenvolvo na tese, a partir da observação das interpretações sobre a realidade social brasileira e o desenvolvimento das estratégias políticas dos principais partidos de esquerda do Brasil – PCB, até a década de 1960, e PT, do final da década de 1970 em diante –, que acabam por afirmar, mesmo que sub-repticiamente, o capitalismo brasileiro como incompleto. Como consequência, uma das tarefas de uma estratégia de esquerda passaria por modernizar, ou seja, por desenvolver o capitalismo. No caso do PT, as premissas sobre as quais se edifica sua estratégia ao longo da década de 1980 permitiriam superar esse impasse, mas o processo histórico pelo qual se transforma e se realiza sua estratégia restabelece e reapresenta o dilema da incompletude, sob nova qualidade.

 

É possível uma aliança como os de cima para realizar uma agenda de pequenas reformas progressistas no Brasil?

 

O que acreditamos é que, num país de capitalismo periférico, subalterno e dependente do capital-imperialismo mundial, não há espaço para avanços graduais, progressivos e pacíficos via reformas, nem mesmo por meio de um reformismo fraco, sem que ocorra uma forte reação da classe dominante. Qualquer estratégia precisa levar esse elemento em consideração. Caso não o faça, será uma estratégia fadada à adaptação ao interior da ordem. Para Florestan Fernandes, a aceleração da revolução dentro da ordem não levaria à atenuação, mas ao recrudescimento do despotismo, pois as classes burguesas, associadas ao imperialismo, não abrirão a ordem econômica ao custo de desestabilizar o capitalismo dependente e a associação entre dominação burguesa e controle estatal por seus estratos hegemônicos. Chegamos, aqui, de volta à questão da corda bamba. Ou nos adaptamos às tarefas exclusivamente da revolução dentro da ordem, ou pensamos uma estratégia que possa, enfim, enfrentar a dominação que perpetua a ordem social desigual, complexa e violenta da sociedade brasileira.

 

Como você definiria o lulismo?

 

No período após Luiz Inácio Lula da Silva exercer seus mandatos de presidente da República, um interessante debate alçado pelo conceito de lulismo tomou a cena teórica e política. Entre diversos estudos empreendidos sobre o período, o de André Singer apresenta uma síntese fundamental, que é a que me baseio para conceituar o lulismo. Para Singer, o lulismo é um fenômeno sociopolítico originado na adesão de camadas mais pauperizadas da população ao projeto colocado em marcha pelo primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Do meu ponto de vista, o lulismo vai além do que propõe Singer. O lulismo revela e oculta determinantes, fundando-se, portanto, em uma controvérsia. O lulismo é resultante de uma arquitetura de governo, que se relaciona e é a expressão mais bem-acabada das metamorfoses da estratégia democrático-popular e não uma manifestação específica que, somente ao chegar ao Palácio do Planalto, assumiria forma própria e autônoma frente à estratégia da classe trabalhadora construída ao longo das décadas de 1980 e 1990 e materializada no PT. O lulismo é a metamorfose, a transformação que carrega, em seu ponto de chegada, uma versão nacional, democrática e popular da estratégia original, a democrático-popular de conteúdo rupturista.

 

Lula é uma das maiores lideranças populares da história do Brasil. Como lidar com isso sem abandonar a perspectiva revolucionária?

 

Ouso dizer que Lula é a maior liderança popular da história do Brasil. Evidentemente, não descarto a importância de tantas outras. Mas, como uma figura que representa um projeto popular que se realiza, Lula é muito emblemático: é um ex-operário que assume a Presidência da República! E é por isso que precisamos estudar o lulismo, sua importância e suas vicissitudes. Vejo que não se deve perder a perspectiva revolucionária, pois o dever de todo socialista é buscar os melhores caminhos e meios para fazer a revolução. Num país como o Brasil, um dos mais desiguais do mundo, racista, misógino, LGBTfóbico, marcado por uma burguesia autocrática e contrarrevolucionária, a nossa responsabilidade aumenta ainda mais. Para tanto, pensar os determinantes do debate estratégico, as interpretações da realidade social brasileira, a atualização do debate sobre o capitalismo brasileiro é o melhor meio de manter a perspectiva crítica e estabelecer debates, interlocuções. Como não se vive de teoria, na prática política devemos estabelecer uma ampla interlocução programática, tensionar o programa da frente popular à esquerda, criticar aspectos que distanciam esse projeto do socialismo, porém fazendo avançar o que há de progressista para a classe trabalhadora, de forma que ampliemos conquistas.

 

Para terminar, uma pergunta clássica: reforma ou revolução?

 

Marx e Engels superam as tendências isolacionistas, utópicas, reformistas e positivistas que se desenvolviam no seio do movimento da classe trabalhadora; e, para eles, reforma e revolução seriam dois corolários articulados não necessariamente em oposição, mas em processo. O ponto nodal desse debate nos parece residir nas relações sociais que serão enfrentadas pela estratégia na articulação dos elementos que pavimentam o caminho para o socialismo, ou seja, em quais são as tarefas e em quais são o ritmo e o encadeamento dessas tarefas revolucionárias. Essa é uma análise, portanto, que só pode ser feita à luz das situações concretas e das particularidades históricas, procedimento que precisamos tomar em conta para analisar as estratégias, inclusive quando estudamos a estratégia democrático-popular.

 

Isabel Mansur é socióloga, doutora em Serviço Social pela UFRJ e participou, na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), do Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior (PDSE). Corda bamba, seu primeiro livro, é uma adaptação da sua tese de doutorado.