Reproduzimos abaixo a entrevista que realizamos com Ricardo Festi, autor do livro recém lançado pela Editora Lutas Anticapital, Fábrica sem patrão. Atualmente, ele é professor da Universidade de Brasília (UnB) e tem desenvolvido pesquisas no campo da sociologia do trabalho. Ele nos conta um pouco sobre as teses que desenvolveu nesse livro, as razões de publicá-la em meia a atual conjuntura política e as suas motivações políticas para atuar no campo da luta das ideias. O livro já pode ser adquirido no site da editora.
Poderia nos explicar do que se trata o livro Fábrica sem patrão: quando a classe trabalhadora desafia o capital?
O livro analisa os processos de lutas sociais e trabalhistas ocorridos na fábrica de cerâmica Zanon, localizada no Norte da Patagônia, na Argentina. Estes culminaram na ocupação da planta pelos trabalhadores, em meados de 2000, e, logo em seguida, no início de uma das mais importantes experiências de gestão operária da América Latina neste século XXI. Eu busco reconstruir uma narrativa sobre os conflitos que começaram no interior da empresa quando um grupo de operários decidiu lutar contra a precarização das condições de trabalho e as arbitrariedades da gerência, ainda em meados dos anos 1990. O contexto era extremamente desfavorável à classe trabalhadora. Estávamos em pleno governo neoliberal de Carlos Menem, com forte apoio das classes médias e, inclusive, de setores do movimento sindical - a maior parte filiado à tradição peronista. Nesse período, as empresas estatais estavam sendo privatizadas e as leis trabalhistas flexibilizadas, criando-se diversas formas de subcontratos. Isso culminou no aumento acentuado do desemprego e no surgimento de um movimento de desempregados cunhado como piquetero, que foi responsável por resgatar uma parte da tradição radical do movimento operário argentino, o classismo, em particular as suas ações diretas, como os piquetes de ruas ou estradas (daí o nome) e a organização horizontal-assembleista.
Nesse contexto, um grupo de ceramistas de Zanon, influenciados pelas lutas que ocorriam em outras categorias, começou a se organizar. A primeira fase dessa organização ocorreu por meio de atividades que estão muito mais vinculadas ao universo do lazer, isto é, o churrasco e as partidas de futebol. A estratégia de utilizar essas tradições culturais foi o primeiro passo dado por esse grupo para a futura organização sindical e política. Aos poucos, esses amigos, indignados com o despotismo fabril, passaram a agir politicamente no interior da fábrica e a lutar por seus direitos. Acho que não esperavam, quando começaram a organizar as partidas de futebol, que um dia teriam uma fábrica sem patrão, autogerida por eles. É verdade que havia um militante trotskista que atuava nesse grupo e, como tal, tinha em sua perspectiva o controle operário, a autonomia sindical, etc. Mas acredito que mesmo ele não esperava, em meados dos 1990, que a luta pudesse chegar tão longe, ainda que estivesse se preparando para tal.
Portanto, a ocupação da fábrica e a sua gestão operária, a partir de 2000, após a empresa entrar em crise e realizar um lockout patronal, foi o resultado de uma confluência de fatores políticos, sociais e econômicos. Não foi obra apenas dos ceramistas, ainda que eles tenham sido os atores centrais. Uma experiência como essa só existe e consegue durar tanto tempo por conta da rede de solidariedade construída com amplos setores da sociedade. Enfim, Zanon é a expressão concreta de uma tese de Mandel, que inspirou a reflexão deste livro, de que em toda luta operária existe o germe do poder operário, isto é, em outras palavras, de que em toda luta particular que tem como base o classismo, existe o germe da revolução social.
O que o levou a estudar a fábrica Zanon no seu mestrado?
Quando eu estava terminando a graduação em Ciências Sociais na Unicamp, em janeiro de 2005, participei do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre. Lá eu tive contato com o movimento de fábricas ocupadas e os piqueteros da Argentina. Fiquei muito impressionado com as operárias e os operários de Zanon e de Bruckman, uma fábrica têxtil de Buenos Aires. Era contagiante a empolgação deles e a esperança que nos davam de um “outro mundo possível”. Eu lembro muito bem quando Celia Martínez, uma operária de Bruckman, discursou sobre a sua experiência de autogestão. Ela falava bem próxima de mim e terminou seu discurso revelando que compreendeu que se pudesse gerir uma fábrica poderia gerir um país. Até hoje me arrepio ao lembrar dessa fala de uma trabalhadora de 60 anos. Então, sob o impacto das experiências de controle operário na Argentina, decidi mudar os meus planos para o mestrado. Abandonei a temática que vinha estudando desde a iniciação científica e migrei para a sociologia do trabalho. Obviamente que facilitou para essa decisão a possibilidade de ser orientado pelo professor Ricardo Antunes, alguém engajado politicamente em defesa das trabalhadoras e dos trabalhadores.
Conte-nos um pouco mais do seu percurso acadêmico.
Eu ingressei no curso de Ciências Sociais da Unicamp em 2001. A minha geração, que cresceu nos anos 1990, viveu o primeiro ciclo de implementação do neoliberalismo na América Latina e as suas consequências sociais. Também viu surgir e crescer às múltiplas formas de lutas e resistências da esquerda, tais como o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra no Brasil. Então, entro na universidade quando o neoliberalismo produz um colapso social, econômico e político em toda região. Isso abriu a possibilidade de partidos e movimentos de esquerda e centro-esquerda ascenderem ao poder por meio das eleições. A Argentina, assim como a Bolívia e a Venezuela, era para nós uma referência e objeto de discussões acaloradas em nossos grupos no movimento estudantil.
Ao terminar a graduação, como já mencionei, optei por estudar a experiência de Zanon e do movimento de fábricas recuperadas. A escolha desse objeto de pesquisa refletia uma inflexão política que vinha fazendo em minha vida, aprofundando a minha filiação ao marxismo, em especial a sua perspectiva mais radical e revolucionária. Também optei por uma militância política mais organizada e sistemática, que me trouxe muitas experiências importantes, mas afastou-me do estudo sistemático, o que teve reflexos na própria escrita da minha dissertação de mestrado. Então, quando ingressei no doutorado, com um projeto sobre a problemática da consciência de classe, havia tomado a decisão de que a luta no campo das ideias seria o meu principal flanco de batalha. Desde então, tenho dedicado todas as minhas energias para isso.
Durante o doutorado, também sob a orientação do Ricardo Antunes, tive a oportunidade de realizar um intercambio em Paris, de 2015 a 2017, vinculado à École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) e sob a supervisão de Michael Löwy. Essa experiência foi fundamental para a alteração do meu objeto de pesquisa. Passei a fazer um estudo socio-histórico sobre a sociologia do trabalho das décadas de 1950 e 1960 no Brasil e na França. Trabalhei com arquivos e pude aprofundar uma reflexão teórica sobre a criação e o desenvolvimento da sociologia do trabalho nesses dois países.
Defendi a tese em 2018 e, no ano seguinte, surgiu a oportunidade de um concurso na Universidade de Brasília. Eu não conhecia a instituição e não tinha ideia de como seria trabalhar nela, mas acabei descobrindo uma universidade extremamente interessante, que tem uma composição muito diversa (algo que não existia na Unicamp até então), com um Departamento de Sociologia bastante forte e atuante. Em 2020, lancei um chamado para um projeto de pesquisa sobre trabalho em plataformas digitais e fui surpreendido com a quantidade de estudantes interessados e engajados. Há uma tradição consolidade de estudos sobre o trabalho na UnB que contou com contribuições como a de Sadi Dal Rosso, quem gentilmente escreveu um dos textos da capa do livro.
Por que publicar um trabalho dez anos depois de terminá-lo?
Os motivos foram essencialmente dois, um de ordem política e o outro pessoal. O primeiro, deve-se, evidentemente, a atual conjuntura política. Acredito que a experiência de Zanon tem uma atualidade enorme e pode servir de inspiração para as novas gerações de lutadoras e lutadores frente à crise econômica, social e política que se anuncia no pós-pandemia. Portanto, além de uma reflexão teórica sobre cooperativas e o controle operário, há também no livro uma reflexão política que eu considero extremamente atual.
O motivo de ordem pessoal é que sentia a necessidade de fechar um projeto que havia ficado pendente. Eu escrevi a minha dissertação de mestrado numa situação bastante adversa, estudando e trabalhando ao mesmo tempo, o que deu origem a um texto que me deixou um pouco frustrado. Sentia-me em dívida com aquelas trabalhadoras e trabalhadores que me inspiraram e motivaram a estudar as fábricas ocupadas na Argentina. Então, a revisão e a publicação da minha dissertação era um projeto antigo, que eu ia adiando ano a ano. Quando o professor Henrique Novaes, da Editoria Lutas Anticapital, convidou-me para publicar este texto, eu havia acabado de defender o doutorado e tinha, finalmente, tempo para levar adiante esta tarefa de reescrita e revisão.
Você alterou ou reviu alguma tese ou alguma parte substantiva do texto?
O livro foi totalmente reescrito e revisado. O desenho final dele é muito diferente de como ficou a minha dissertação de mestrado. É natural que após dez anos tenha amadurecido intelectualmente e melhorado a minha escrita. Mudei muito a sua forma, mas também o seu conteúdo. A tese central continua a mesma, isto é, a importância da centralidade da classe trabalhadora no processo de emancipação social, ainda que ela não seja a única. No entanto, hoje penso um pouco diferente sobre algumas questões que tem implicações políticas, como, por exemplo, o papel das cooperativas de trabalho e de produção na luta social. Na minha dissertação, fui muito crítico às cooperativas e ao cooperativismo, em particular a Economia Solidária. Penso que esta crítica condizia com o contexto, pois, em 2010, apostava num cenário à esquerda, numa saída mais progressista para a América Latina. A minha geração, que viu a derrota eleitoral do Neoliberalismo na passagem de século e viveu apaixonadamente cada luta ocorrida no continente contra o capital e o imperialismo, achava que uma revolução estava no horizonte. O desenlace mostrou-se bastante diferente e não há espaço aqui para desenvolver os motivos disso. Os fatos estão aí e fica claro que não estamos hoje num período “progressista” ou de conquistas de direitos. Então, voltando à questão das cooperativas, se antes eu as via como um limite para a luta da classe trabalhadora, quase como um desvio da luta revolucionária, hoje eu as vejo, no contexto do capitalismo neoliberal, como um passo à frente na organização e na consciência dessa classe. Criar uma cooperativa, como tem sido feito entre as entregadoras e entregadores por aplicativos, por exemplo, é uma ação progressista e de confronto ao capital. É defrontar-se contra o individualismo e mostrar a falácia da ideologia do empreendedorismo, ainda que essas cooperativas também se insiram em outras contradições insolúveis do sistema, como busquei problematizar no meu último capítulo. Bom, acho que, ao final, mesmo tentando fazer mais mediações sobre essa questão das cooperativas, meu texto permaneceu bastante crítico a elas. Temo que, ao contrário da dissertação, a conclusão deste texto seja num tom mais pessimista.
Como a fábrica Zanon se encontra hoje?
Infelizmente, há anos a fábrica enfrenta uma grave crise financeira. Ela piorou depois de 2009, quando explodiu em todo o mundo a crise econômica. Este é um drama das experiências de cooperativas de trabalhadores. Em geral, elas se instalam em empresas marginais da economia ou em vias de falir, o que faz com que muitos coletivos de trabalhadores tenham que assumir dívidas de seus antigos patrões. Nós temos vários casos assim aqui no Brasil, como a Cipla e a Flaskô, por exemplo. É muito difícil para essas empresas sobreviverem. Veja o que aconteceu com o Hotel Bauer, em Buenos Aires. Por isso é muito importante a solidariedade mais ampla possível à essas experiências!
Eu tentei sem sucesso uma entrevista com alguma coordenadora ou coordenador da fábrica para publicar junto ao livro. Queria com ela atualizar a situação de Zanon e abordar questões que eu não desenvolvi e que não daria para fazer agora. Diante da negativa deles, meu amigo Fernando Aiziczon, historiador argentino e autor de um livro sobre Zanon, nos enviou um artigo seu para ser traduzido e publicado especialmente no livro. Acho que esse texto permite uma outra visão sobre o processo e algumas atualizações do que ocorreu desde 2010, quando se encerrou a minha pesquisa.
Vamos aproveitar para falar do capítulo intitulado “Diálogos possíveis: controle operário e cooperativas na Era Digital” e precedido por “Notas para uma polêmica atual”. Do que se trata esse texto?
Desde que defendi a minha tese de doutorado, em outubro de 2018, eu venho estudando os temas da automação e do trabalho em plataformas digitais. A automação industrial foi muito debatida e estudada pela geração dos sociólogos dos anos 1950 e 1960, que eu abordei na pesquisa de doutorado. Assim, quando surgiu no grupo do professor Ricardo Antunes uma oportunidade de reflexão sobre os impactos da Indústria 4.0 no mundo do trabalho, numa parceria com o Ministério Público do Trabalho, eu ingressei neste projeto a partir de uma reflexão teórica. O resultado foi o capítulo que escrevi para o livro Uberização, trabalho digital e indústria 4.0 que saiu agora pela Editora Boitempo. Logo em seguida, ingressei como professor do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília e aqui dei início a um projeto de pesquisa empírica sobre os motoristas e entregadores por aplicativos do Distrito Federal. Por acaso, este tema ganhou uma relevância política enorme após o início da pandemia da Covid-19 e, em especial, com as mobilizações dos entregadores em todo país. Este movimento tem impulsionado inúmeras formas de organização independente e buscado garantir seus direitos. Ele é, por vezes, contraditório, mas há muitos elementos progressistas. Um deles tem sido o surgimento de projetos de cooperativas de plataformas digitais. Então, como estava para publicar um livro sobre uma experiência de autogestão, resolvi incorporar no livro uma nota final sobre as potencialidades, os dilemas e os limites dos movimentos por cooperativas de trabalhadores de plataformas digitais.
Por fim, quais são as suas expectativas com o livro?
Eu espero que ele possa inspirar jovens trabalhadoras e trabalhadores, não apenas sobre as possibilidades de autogestão sem a existência de patrões, mas, sobretudo, que é possível construir uma alternativa à miséria desta sociedade.