Confiram a entrevista de Denise Morado Nascimento, Professora da UFMG, autora do livro "O sistema de exclusão na cidade neoliberal brasileira"

Postado por Mariana da Rocha em

 

1) Gostaria que você se apresentasse e explicasse seu ponto de partida ao estudar a exclusão na cidade neoliberal.

 Sou Professora da Escola de Arquitetura e do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Minas Gerais, coordenadora do grupo PRAXIS-EA/UFMG. A partir do meu Pós-Doutorado em Geografia na UFMG e da minha inserção no Programa Residente do Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares da UFMG, este livro se concretizou.

 Por que estudar exclusão na cidade? Por que nossas relações sociais e de trabalho estão na cidade, ou seja, nossas experiências, trajetórias, percepções e contradições estão na cidade. Temos uma história individual inserida dentro de uma história coletiva, com diferentes propósitos, apreciações, bem como oposições, conflitos, relações de força e tensões que nos compõe a alimentar escolhas, decisões e interesses.

 Por que estudar a exclusão na cidade neoliberal? O que isso quer dizer? No livro, não analisei os fundamentos econômicos que regem o neoliberalismo no Brasil, em grande medida, pautados pelo modelo neoliberal dos países desenvolvidos. Mas é preciso conhecer suas origens, e, principalmente, a financeirização porque é nessa fase do modo de produção capitalista em que a lógica e os procedimentos próprios do mercado são implementados pelo Estado. Essa transformação do Estado vem permitindo a gestão dos territórios e das cidades por empresas, as formas de vida privatizadas em condomínios, a corrosão de direitos, a eliminação dos interesses públicos, o endividamento das famílias, o desemprego de trabalhadores, as relações sociais individualizadas e a polarização entre ricos e pobres.

 

Esse cenário dá forma às cidades contemporâneas brasileiras, transformando indivíduos, famílias e sociedade. Nesse bojo, vivemos em sofrimento psíquico relacionado a vários aspectos, sem dúvida específicos e individuais, mas, de forma importante, relacionado ao fato de que vivemos na cidade contemporânea de forma coletiva.

 

O neoliberalismo é um “regime de existência social”, “forma de autoridade política”, um sistema de poder que emprega todos os meios que lhe são necessários para sua implementação. Hoje, estamos vivendo no Brasil, o neoliberalismo ao extremo por meio da ortodoxia econômica, das fake news, do desprezo pelas instituições e pelas leis, do machismo e do racismo, do ódio aos intelectuais e às universidades, do ódio às “maiorias minorizadas” (termo cunhado pela Professora Lilia Schwarcz), isto é, índios, negros, crianças, idosos, LGBTQI+, mulheres, obesos, deficientes, ou, ainda, os acometidos pelas doenças da pobreza.

 Uma tragédia humana urbana.

 

2) A cidade neoliberal nos atinge psicologicamente?

 Extremamente. Os discursos de ódio se impõem nas redes sociais sobre todos os outros possíveis. Nesse cenário, a cidade contemporânea funciona em razão da constante preocupação de um (Nós) em sobreviver individualmente ao outro (Outros).

 

Antes do processo de neoliberalização, a preocupação era pela disputa do viver bem e da convivência pública de um em respeito pelo outro. Agora somos empresários de nós mesmos, como diz o filósofo Byung-Chul Han. É a sociedade do desempenho, constante e continuamente ativa por sujeitos hiperativos, histéricos e hiperneuróticos. Estamos cansados, esgotados, cegos, calados e solitários.

 E é nessa cidade neoliberal que estudei o sistema de exclusão. Só que não estudo exclusão sendo resultado de processos que dificultam ou impedem direitos, assim como tem sido investigada desde os anos 1970. Meu argumento se constitui de outra forma.

 Entendo que a exclusão é estrutura e sintoma das condições da cidade capitalista, onde a luta constante por existirmos a partir daquilo que é próprio de cada um (raça, linguagem, gênero, religião, terra e renda) geram desigualdades sociais, econômicas, culturais, territoriais, ambientais e políticas na vida urbana. E não ao contrário, desigualdades a gerar exclusão. Minha abordagem é construída a partir da teoria da propriedade de John Locke, da teoria social de Pierre Bourdieu e da teoria da encriptação do poder de Ricardo Sanín-Restrepo.

 

3) No seu livro você escreve que seu propósito é desnaturalizar a exclusão e demonstrá-la como estrutura e sintoma que impedem o "direito de existir". Do que se trata?

 A exclusão como estrutura significa entendê-la como princípio gerador e organizador de sistema de disposições duráveis que apresentam determinadas características constituintes de suas condições de existência e de experiência que são historicamente construídas.

 A exclusão como sintoma significa entendê-la como mecanismo de ajustamento dos indivíduos às situações encontradas nas cidades ou como modo de estar no mundo capitalista em razão das diferenças constituintes das cidades neoliberais.

 Me aproximei de Freud para dizer que a exclusão é ajustamento encontrado por alguém ao conflito vivido entre várias situações diante daquilo que se quer da vida. Por exemplo, segurança, espelhada no condomínio como resposta ao medo que levam pessoas a se esconder em condomínios fechados diante do outro que está lá fora. O psicanalista Christian Dunker escreveu um livro maravilhoso abordando essa questão: “Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros”.

 A exclusão é estrutura e sintoma porque é resposta dada ao conflito existente e vivenciado em várias situações dadas pela história da cidade capitalista e gera desigualdades sociais, econômicas, culturais, territoriais, ambientais e políticas na vida urbana, impedindo nosso direito de existir.

 O Direito de existir nada mais é do que estar no mundo das diferenças, no lugar do encontro, no lugar das vidas humanas. Existir é diferir. Somos todos diferentes. Mas quando alguém diferente se manifesta, e o outro, em sua perversidade se sente ameaçado, este deseja o aniquilamento do outro. Por isso, o direito de existir na cidade contemporânea é premente. As pessoas ameaçadas se sentem autorizadas a aniquilar as “maiorias minorizadas”.

 Contudo, o homem só é livre "quando entra de posse de sua potência de pensar e agir”. Essa é a proposta do direito de existir, a necessidade de livremente pensarmos e agirmos na cidade a partir das diferenças que nos constituem quanto à raça, linguagem, gênero, religião, terra e renda. Isso significa entender o Outro como processo, e não como estado contrário a alguém.

 

4) Como o olhar da transdisciplinaridade te ajudou na compreensão da exclusão?

 Desde os anos 1990, Christian Topalov, sociólogo urbano marxista francês, já dizia que estamos diante de uma crise dos nossos conhecimentos sobre a cidade e o território. Me sinto completamente imersa nessa crise há muitos anos. A professora Luciana Lago, quem prefaciou o livro, afirmou que meu trabalho é “busca motivada pela frustração frente à falta de efetividade do conhecimento produzido pelos estudos urbanos na construção de uma cidade mais justa”.

 Procurei deslocar minhas referências teórico-metodológicas a partir daquilo que distintas disciplinas poderiam oferecer. História, geografia, direito e psicanálise com o objetivo de descobrir outros horizontes, para além do campo que estou – arquitetura e urbanismo.

 Foi um trabalho longo e exaustivo de articulação teórico-metodológico e de proposição em busca de outra configuração ao redor do que todos reconhecemos – a exclusão. Esse lugar da transdisciplinaridade transcende nossos conhecimentos. Não é encontro ou justaposição de disciplinas acadêmicas e científicas. É reflexão profunda, aberta e, mais importante, imprevisível entre saberes. Na minha pesquisa apostei em outro caminho teórico-metodológico: fazer com a sociedade.

 O que isso quer dizer? Precisamos ouvir o outro e se transformar com o outro. Na cidade, os moradores são ocultados por meio de práticas legitimadas e consolidadas por especialistas – Nós – Estado, entidades, universidades, agências nacionais e internacionais, instituições intergovernamentais, etc. O diagnóstico urbano é um dos instrumentos dessa prática especialista, em grande medida, burocrática e tecnocrática, que entende a cidade como uma doença. O diagnóstico não incorpora olhares, vivências e percepções daqueles que moram e ocupam os territórios. Os moradores não falam. A cidade não fala. E os especialistas não escutam.

 O diagnóstico urbano feito por indicadores, índices, categorias, classificações, normas, modelos e conceitos não beneficia quem mora e quem ocupa a cidade, mas alimenta o olhar de quem precisa diagnosticar. Sugiro, ao contrário, que arquitetos e planejadores urbanos que categorias como, por exemplo, favelas, vilas, ocupações urbanas, ocupações organizadas, aglomerados, cortiços, aldeias, quilombos, mocambos, loteamentos periféricos, assentamentos informais, assentamentos subnormais, assentamentos precários, assentamentos de interesse social e habitação social sejam unicamente nomeadas como moradia. É o que somos: moradores morando em moradias. Um rápido exercício se quisermos ler a cidade e não diagnosticá-la como doença.

 Ao fim do livro, apresento uma tecnologia social como proposta de escuta e de representação das narrativas de moradores que tem como objetivo ouvir os moradores e se transformar com os moradores. Nessa plataforma, desenvolvida pelo grupo PRAXIS-EA/UFMG, o olhar técnico-institucional é deslocado, subvertendo o jogo de linguagem vigente do diagnóstico urbano.

 É um modo de ler a cidade, sob o ponto de vista dos Outros, das diferenças, distantes de regras, de planos, de modelos ou, ainda, de categorias-conceitos e indicadores-índices. Refere-se à outro jogo de linguagem capaz de confrontar politicamente o que está imposto.

 Por fim, gostaria de agradecer a Editora Lutas Anticapital pela parceria e a todos os pesquisadores envolvidos nas proposições de pesquisa, ensino e extensão do grupo PRAXIS-EA/UFMG, além dos amigos, professores e outros parceiros envolvidos nesse percurso. Em especial, agradeço a Profa. Luciana Lago pelo prefácio. Espero que o livro contribua para entendermos como nós, moradores, enfrentamos o sistema de exclusão diante das condições da vida cotidiana em busca do direito de existir.