Confiram a entrevista de Luciana Aliaga, sobre seu novo livro Introdução a Gramsci

Postado por Mariana da Rocha em

Entrevista de Sabrina Areco [*] com Luciana Aliaga sobre seu novo livro "Do Sul ao norte: uma introdução a Gramsci"

 

Sabrina Areco: no seu livro você demonstra como A. Gramsci e sua reflexão são profundamente articulados com o seu tempo histórico, na medida em que não apenas sua experiência vivida ocorreu em um período específico - isto é, na virada do século XIX para XX e depois marcado pela I Guerra Mundial e Revolução Russa - mas também no sentido em que o marxista não foi apenas um expectador da história. No lugar disso, estamos falando de um homem engajado e de partido ligado à esquerda revolucionária do começo do século passado. Considerando tal aspecto, você entende que há nos Cadernos do Cárcere uma estratégia política? Se sim, o que permanece dessa estratégia para as lutas emancipatórias do século XXI?

 

Luciana Aliaga: O engajamento político orientado por uma reflexão teórica rigorosa, que foi sintetizado na expressão “filologia vivente”, é o aspecto mais importante do pensamento de Gramsci no meu ponto de vista. Esse aspecto garante atualidade e força aos argumentos do autor e nos permite ler o presente a partir das suas reflexões. Da juventude à maturidade o autor demonstra um inconformismo permanente com as escabrosas desigualdades sociais e políticas italianas e com os recorrentes processos de apassivamento e submissão das massas populares, que se expressavam na busca por adequar a estratégia socialista aos desafios de cada momento. Sendo assim, essa estratégia foi concebida a partir do ponto de vista das classes subalternas e na necessidade da construção de um movimento autônomo, intelectualmente ativo e à altura dos desafios do seu tempo histórico. Isso fica muito claro nos embates com o próprio Partido Socialista Italiano (PSI) sobre os conselhos de fábrica, nas páginas dos periódicos socialistas como Il Grido del Popolo, da edição piemontesa do Avanti, e especialmente no semanário fundado pelo autor L’Ordine Nuovo, a partir de 1919. A principal estratégia antes do cárcere se fundava na formação de sujeitos autônomos a partir do local de trabalho, unindo organicamente trabalho intelectual e prático. No entanto, os principais obstáculos se levantaram no seio do PSI, tanto à direita, pelas frações reformistas parlamentares e sindicais e à esquerda, pelo dogmatismo e falta de flexibilidade em assumir os conselhos como instrumentos revolucionários. Com a derrota do movimento conselhista, Gramsci investiu energias na criação do Partido Comunista da Itália (PCd’I), em 1921, e depois com a prisão em 1926, suas reflexões sobre o partido revolucionário se aprofundaram. Em suma, a estratégia de Gramsci sempre foi uma leitura concreta das relações sociais de forças e a adoção da estratégia socialista sem dogmatismos ou adesão a posições elitistas. Seja nos conselhos ou no partido, o que permanece atual é a importância de construir um movimento autônomo, isso significa que as lideranças populares devem falar em seu próprio nome, sem buscar salvadores da pátria da ordem estabelecida. Permanece importante também a necessidade da elevação intelectual e moral popular, a necessidade da educação formal, técnica e política, assim como a construção de movimentos coletivos e o enfrentamento dos individualismos e oportunismos, especialmente deletérios nas fileiras socialistas.

 

Sabrina Areco: Os Cadernos do cárcere já foram tratados por estudiosos de Gramsci como um labirinto formado por múltiplas entradas para as quais não necessariamente encontramos as saídas. Temas e autores são introduzidos e o tratamento dado a cada um deles resultou em alguns textos não muito longos - como é o caso do Caderno 22 sobre Americanismo e fordismo - porém com nível de elaboração e análise bastante sofisticados, como também pode-se ler na edição crítica de V. Gerratana (1975) cadernos que compõem basicamente um elenco de referências bibliográficas. Qual o critério que você utilizou para identificar os autores e temas centrais da reflexão gramsciana?

 

Luciana Aliaga: O primeiro critério importante no meu modo de ver consiste em levar em consideração a biografia do autor em consonância com seu tempo histórico. Dito de outra forma, se queremos saber o que é mais importante para o autor, devemos perguntar a ele, que nos responde em seus artigos em periódicos, nos documentos do partido, nas suas cartas e notas do cárcere. Nesse aspecto torna-se fundamental saber porque em determinada situação, o autor optou por uma tática específica, para isso torna-se importante o conhecimento das questões chave do seu tempo histórico, dos autores mais relevantes em cada período, da profundidade das crises políticas e econômicas e de modo geral, das feições da cultura. Importante também conhecer a bibliografia produzida até aqui, a tarefa intelectual de interpretação teórica é solitária, mas ao mesmo tempo é coletiva, precisamos procurar os mapas que estudiosos já traçaram antes de nós. Não é, portanto, tarefa fácil andar por esse labirinto, mas desconfio que Gramsci nos deixou um “fio de Ariadne” para nos orientar nessa tarefa coletiva de tradução do seu pensamento para o nosso próprio tempo histórico.

 

Sabrina Areco: Há no livro Do Sul ao Norte: uma introdução a Gramsci um importante esforço de pensar sobre as possibilidades e limites dos conceitos gramscianos para pensar a América Latina e o tema que você chamou, a partir de F. Fernandes, de “colonialismo interno”. O que torna possível tais “usos” de Gramsci?

 

Luciana Aliaga. O que torna possível o uso na América Latina, ou pode-se dizer também, a tradução para nossa própria história e cultura, é justamente a similaridade estrutural da periferia europeia e latino-americana, guardadas as suas particularidades, evidentemente. Quando se fala em estrutura estamos fazendo menção, entre outras coisas, a composição social das classes e à formação do Estado. Nesse sentido, o processo de revolução burguesa pelo alto, o caráter heterônomo das elites, a ausências de formação de lideranças das classes subalternas e sua recorrente assimilação ao poder e o padrão violento de sociabilidade são características do que Gramsci chamou de revolução passiva e Florestan Fernandes chamou de revolução encapuçada. São revoluções sem revolução, mudanças moleculares pelo alto, necessárias para uma modernização segura para as classes dominantes, sem sublevações a partir de baixo, obstaculizando e controlando o processo de emancipação. Em graus diferentes o continente latino-americano padeceu desse tipo específico de dominação bonapartista-cesarista, no qual a formação de movimentos autônomos unificados a partir de baixo é a novidade que precisa ainda irromper na história.

 

Sabrina Areco: A proposta de escrever uma introdução ao pensamento de Gramsci comporta o risco - que você conseguiu contornar com grande êxito em Do sul ao norte: uma introdução a Gramsci - de uma simplificação das ideias. Quais cuidados tomou para tratar de Gramsci de forma cuidadosa e, ao mesmo tempo, conseguir fazer com que @s leitur@s se interessem por suas ideias?

 

Luciana Aliaga: Acho que esse é o maior desafio do livro, tornar o mais acessível possível um pensamento rigoroso e complexo, de um tempo histórico, cultura e geografia distantes de nós, com muitos interlocutores desconhecidos do público brasileiro, sem cair no simplismo. Esse foi o meu objetivo, que com certeza precisa ser aprimorado e para isso a recepção crítica será muito importante para que se possa avançar nessa tarefa de ativação intelectual de massa. Espero que esse pequeno livro contribua nessa tarefa que é permanente. O interesse por Gramsci se deve, como disse antes, à própria acuidade do autor, à importância dos seus conceitos para desvendar as múltiplas faces da dominação de classe, especialmente na periferia.

 

[*] Sabrina Areco é professora de ciência política na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS) e na Universidade Estadual do Maranhão (UEMA). É professora permanente do Programa de Pós-Graduação Desenvolvimento Socioespacial e Regional (PPDSR,/UEMA) e pesquisadora colaboradora do Programa de Pós-graduação em Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas (IFCH/UNICAMP), membro da International Gramsci Society do Brasil (IGS/Brasil).