Entrevista com a pesquisadora Fabiana de Cássia Rodrigues, da UNICAMP, sobre seu novo livro "MST: formação política e reforma agrária nos anos de 1980"

Postado por Mariana da Rocha em

Um olhar para o MST dos anos 80

Entrevista com Fabiana de Cássia Rodrigues

Por Karen Canto

Professora do Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação da Unicamp, Fabiana de Cássia Rodrigues lança seu primeiro livro intitulado MST: Formação política e reforma agrária nos anos de 1980. O projeto, desenvolvido durante seu doutoramento, revisita um momento decisivo para a história do movimento dos trabalhadores rurais sem terra. Fabiana é graduada em Ciências Econômicas pela Unesp, mestre em História Econômica pela Unicamp e doutora em Educação pela Unicamp.

Para Fabiana, mesmo anos depois de redigido, o livro diz coisas sobre o Brasil dos anos 80 que são imprescindíveis para entender o Brasil de hoje.

 

Como surgiu a ideia de transformar em livro o objeto de estudo do seu doutoramento, uma pesquisa abrangente sobre o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra dos anos 80?

R: Na minha defesa de tese, a banca por unanimidade recomendou a publicação da Tese devido à sua relevância para o debate em torno da luta pela terra. De acordo com a banca, a Tese faz uma leitura importante sobre a reforma agrária e sobre a questão da formação política do MST nos 80 e merecia esse encaminhamento. Por outro lado, eu demorei muito para entender a relevância desse livro. Me perguntei muitas vezes se essa tese deveria realmente ser publicada, se existiria interesse por parte do leitor. O tempo ajudou a ter o distanciamento necessário para que eu percebesse o quanto esse debate é importante para ajudar as pessoas a conhecerem mais sobre as possibilidades e, principalmente, sobre os limites da luta pela reforma agrária nos anos 80. No final do ano passado, decidi que o trabalho deveria ser publicado e procurei uma revisora para dar esse encaminhamento. O trabalho com a revisora foi muito rico, pois ela fez uma observação importante sobre a correlação entre a política agrária com relação à Amazônia durante a ditadura e a política ambiental com relação à Amazônia no atual governo. Percebi que mesmo anos depois, essa Tese diz coisas sobre o Brasil daquele momento, que ajudam a fazer uma leitura do Brasil de hoje e contribui para entender como a expropriação de terra, a expulsão de povos indígenas, a derrubada de florestas são constitutivos do modo de expansão do capitalismo no Brasil. Ao mesmo tempo, sei que é muito importante tentarmos entender a raiz dos problemas. Estudar a História do Brasil e entender de onde vem nossos desafios é fundamental para pensar o presente. Isso tudo me fez compreender que essa leitura é atual e necessária.

 

“Percebi que mesmo anos depois, essa Tese diz coisas sobre o Brasil daquele momento, que ajudam a fazer uma leitura do Brasil de hoje e contribui para entender como a expropriação de terra, a expulsão de povos indígenas, a derrubada de florestas são constitutivos do modo de expansão do capitalismo no Brasil.”

 

 Você possui uma formação acadêmica ampla e diversificada. Como foi percorrer esse caminho, a partir de uma graduação em Economia? Qual foi o impacto dos intelectuais que são referência na sua obra, como Florestan Fernandes, Caio Prado Júnior, Octavio Ianni, nessa trajetória?

R: Quando eu fazia graduação em economia, em um dado momento me interessei por estudar desenvolvimento sustentável. Em dada ocasião, fiquei responsável por apresentar no meu grupo de estudos um livro do economista polonês Ignacy Sachs, que estudava desenvolvimento sustentável. No livro, o autor comenta que é impressionante que num país como o Brasil, com térreas férteis em que o sol brilha todos os dias, de tamanha extensão territorial e com tantas possibilidades de produção agrícola, haja pessoas com fome. Aquilo mexeu comigo. Fiquei me fazendo aquela pergunta e me dei conta que nunca havia parado para pensar nisso. Na época eu era uma menina de 18 anos. Conversando com o professor que coordenava esse grupo de estudos, Paulo Lima, ele me disse que o que eu estava de fato questionando era a questão agrária, e me sugeriu a leitura de Caio Prado Júnior para que eu passasse a entender melhor. Ainda na graduação eu estudei um pouco sobre a questão agrária no governo JK. Durante o mestrado na História Econômica, fui orientada por Plínio de Arruda Sampaio Júnior, que era um grande estudioso de Celso Furtado, Florestan Fernandes, Caio Prado Júnior entre outros. Nessa época eu passei a estudar com mais afinco Celso Furtado, Caio Prado Júnior e Ignácio Rangel, para entender o papel da questão agrária no desenvolvimento do capitalismo no Brasil dos anos 50. Todos esses autores percebiam muitas possibilidades abertas para o capitalismo brasileiro. Era um período muito rico para o Brasil em todos os sentidos, social, econômico, artístico. Certamente esses autores me influenciaram a dar continuidade a esses estudos no doutorado. Meu grande questionamento ao sair do mestrado era sobre a percepção da questão agrária para o movimento dos trabalhadores sem terra, que era o maior movimento de luta pela terra da América Latina. O que era reforma agrária para eles? O que eles entendiam como questão agrária? Eu tinha acabado de estudar a questão agrária dos anos 50 e agora queria estudar o contemporâneo, que era o MST.  Foi então que decidi fazer o doutorado sobre o MST e comecei a estudar mais detidamente o Florestan Fernandes e Karl Marx. Inclusive decidi fazer o doutorado na Educação pois eles ofereciam uma disciplina que fazia uma leitura da obra completa do Marx, coisa que já não se fazia mais na Faculdade de Economia.

 

“Meu grande questionamento ao sair do mestrado era sobre a percepção da questão agrária para o movimento dos trabalhadores sem terra, que era o maior movimento de luta pela terra da América Latina. O que era reforma agrária para eles? O que eles entendiam como questão agrária?”

 

Um aspecto bastante explorado no seu livro, é a importância de se tratar da questão agrária sob a perspectiva das particularidades do capitalismo no Brasil. Que particularidades seriam essas e de que forma afetam a questão agrária no país?

R: Quando eu falo das particularidades do capitalismo, estou dialogando com autores que estudaram a formação histórica do Brasil sob essa ótica por entenderem a especificidade do capitalismo que aqui se desenvolve. O historiador que é pioneiro nesse trabalho é Caio Prado Júnior. Essa perspectiva aberta por ele é depois desenvolvida por outros autores, especialmente por Florestan Fernandes, que busca entender a revolução burguesa no Brasil. Entender as particularidades do capitalismo brasileiro é compreender que a inserção desse território na expansão comercial européia no século XVI nos coloca num lugar de subserviência, interagindo no modo de produção como colônia de exploração. Essa subserviência é tal, que ao longo dos séculos, nossa economia e sociedade foram organizadas em função de interesses externos à maior parte da população que aqui trabalha e habita. Compreender isso é compreender que o Brasil se insere como uma colônia de exploração com base no latifúndio, na exportação de bens agrícolas e também na ultra exploração do trabalho, primeiro se utilizando do trabalho indígena, depois do trabalho escravo. Essa marca da ultra exploração do trabalho é uma marca que permanece ao longo dos séculos, mesmo com a abolição da escravidão. Esses elementos, que são muito caros ao que o Caio Prado Júnior chama de “sentido da colonização”, é algo com o qual nós tínhamos de lidar no século XX. Superar ou não o sentido da colonização? O processo de intensificação da industrialização no Brasil, especialmente nos anos 50 se deparava com essa questão. Que tipo de capitalismo nós vamos ter? Ou seja, nós vamos ter um capitalismo com um mínimo de bases democráticas ou não? Nesse cenário, a reforma agrária aparecia como um tema decisivo nos anos 50. No capitalismo dos países centrais, as revoluções burguesas clássicas envolveram lidar com a questão agrária e, em muitos casos, realizar a reforma agrária. O Brasil vai seguindo um caminho (nesse sentido, o estudo do Florestan Fernandes é essencial para entender esse processo), de um capitalismo que não combina com democracia. Trata-se de um capitalismo que se constitui de maneira autocrática. Florestan fala de um capitalismo difícil, um capitalismo selvagem porque é pautado numa dupla articulação entre dependência e subdesenvolvimento. Essas duas características centrais e particulares à formação histórica do Brasil constituem o capitalismo brasileiro: a dependência nos tira a autonomia e a soberania para tomar as decisões com relação à economia e à sociedade, estamos sempre a reboque de decisões externas; já a manutenção do subdesenvolvimento  cria e recria desigualdades que são fundamentais para manter a ultra exploração do trabalho e os baixos salários, o que está intimamente vinculado à concentração latifundiária. Não distribuir terras no Brasil, e o livro discute muito isso, tem muito a ver com a correlação de forças entre capital e trabalho. Dar essa resposta em relação à distribuição de terras mudaria o estatuto do trabalho no Brasil pois teria uma série de desdobramentos na condição do trabalhador no país.

 

“Entender as particularidades do capitalismo brasileiro é compreender que a inserção desse território na expansão comercial européia no século XVI nos coloca num lugar de subserviência, interagindo no modo de produção como colônia de exploração.”

 

Na sua obra, você desenvolve a hipótese de que o vínculo entre MST e PT fez com que o movimento atribuísse uma parte importante da luta pela terra ao PT e ao seu Programa Democrático e Popular. Que impacto isso teve na trajetória no movimento e da Reforma Agrária?

O MST contou com a estratégia do Programa Democrático e Popular do partido dos trabalhadores. O movimento tinha uma tática de luta que é a ocupação de terra e trabalhava em função disso, mas contou com a estratégia do Programa do PT para a realização da reforma agrária.  As esperanças estavam todas depositadas na possibilidade de o partido dos trabalhadores chegar ao poder e, uma vez lá, inserir a reforma agrária num conjunto de reformas prometida por esse partido. A relação umbilical entre MST e PT passou pelo auge das ocupações de terra, fruto de um movimento muito aguerrido do MST ainda no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, nos anos 90. Quando Lula vence as eleições, há toda uma política de abrandamento das ações radicais do MST em função do tipo de relação que o movimento estabelece com o governo. Os governos petistas evidentemente atendem a uma série de reivindicações do movimento, especialmente na área da educação. Há uma série de projetos educacionais que recebem recursos do Estado para que o MST expanda suas escolas, forme muitos de seus militantes em nível superior, entre outras ações, o que é muito positivo. Por outro lado, o essencial que era a realização da reforma agrária, não aconteceu, ao contrário. Acredito que o abrandamento das ações do MST quando o governo do PT chega ao poder, tenha sido a principal consequência desse vínculo.

 

“O movimento tinha uma tática de luta que é a ocupação de terra e trabalhava em função disso, mas contou com a estratégia do Programa do PT para a realização da reforma agrária.

 

 

O Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra, se caracteriza como um dos fenômenos sociais e políticos mais expressivos do século XX, sendo considerado o maior movimento social de luta pela terra na América Latina.  Qual o papel político e social do MST na atualidade?

R: O MST permanece resistindo. O movimento tem uma conquista muito importante e muito bonita que é a Escola Nacional Florestan Fernandes que permanece existindo e resistindo. Mas creio que o movimento não se recuperou do baque de não ter implementado a reforma agrária durante os governos petistas e, tampouco, do golpe de 2016. Permanece como uma força crítica, mas, evidentemente, o cenário é muito difícil para o movimento e para a esquerda como um todo. O MST faz parte desse conjunto, dessa esquerda que ainda não encontrou um caminho para se recolocar no debate político que hoje é pautado pela extrema direita.

 

“creio que o movimento não se recuperou do baque de não ter implementado a reforma agrária durante os governos petistas e, tampouco, do golpe de 2016. “

 

A sociedade brasileira enfrenta um momento de obscurantismo, com perda de direitos, recrudescimento da violência, ataques paulatinos à democracia. Segundo sua pesquisa, o MST surgiu durante o desabrochar das lutas contra a ditadura. Na sua visão, é possível fazer um paralelo entre esses dois momentos da história e esperar que, através da organização social e política, seja possível garantir a democracia?

R: Acho muito difícil comparar esses dois momentos da história do Brasil. No final dos anos setenta e início dos oitenta, nós assistimos uma reorganização dos movimentos políticos em vários setores da sociedade.  Havia o movimento de luta pela terra, mas também de luta pela educação, pela saúde, pela liberdade. Ocorria também uma participação muito ativa da Igreja Católica na organização das bases, com as Comunidades Eclesiais de Base. Outro aspecto muito importante, era o ciclo de greves do ABC Paulista que deu origem ao PT e representava uma abertura histórica que fortalecia as pautas populares.  Além disso, a ditadura passava por um processo de fragilização política em virtude da crise econômica que ocorria naquele momento. Ou seja, existia uma confluência de fatores que favoreceu a ascensão da luta pela democracia. Se fosse para fazer uma comparação, o que é sempre difícil, acredito que nós estamos num momento anterior àquele. Estamos num momento de ascensão das forças autocráticas e em que uma organização política das forças populares da sociedade aparece como desafio.

Karen Canto é graduada e mestre em química pela UFRGS, doutora em Ciências pela Unicamp, aluna do curso de especialização em jornalismo científico Labjor/Unicamp e bolsista Mídia Ciência (Fapesp).