"Esse livro é uma sistematização de reflexões, por certo ele traz uma contribuição de aproximar os debates da Pedagogia com a Geografia, com o pensamento geográfico e a formação de professores, e procura colocar-se como um elemento mediador de processo de ensino e aprendizagem na formação de professores de Geografia e na formação de Pedagogos. Nossa expectativa é que o livro ajude os professores a refletirem sobre esse processo e possamos, Paula e eu, continuarmos construindo reflexões que fortaleçam uma perspectiva libertadora de ensino e de, por sua vez, de formação docente”.
O livro apresenta um longo debate entre Pedagogia e Geografia, como você pensa a relação entre a Geografia acadêmica e a Geografia escolar?
Gilberto - Desde o processo de sistematização da Geografia Moderna esse debate entre o conhecimento Geográfico e o Ensino de Geografia ganha vulto. No primeiro momento o conhecimento geográfico sistematizado na academia já se estabelecia com fortes vínculos ao Estado. Na verdade a Geografia se estrutura como ciência a partir de uma demanda do Estado, na estruturação de um conhecimento que desse amalgama ao processo de consolidação do Estado moderno capitalista. Essa relação esteve presente entre os principais nomes da ciência geográfica, tais como Friedrich Ratzel, Paul Vidal de La Blache, até mesmo em geógrafos políticos, como Halford John Mackinder, que tratava o ensino de geografia como uma ferramenta imperial britânica, e com os anarquistas Piotr Kropotkin e Elisée Reclus. Esse debate ganhou maior discussão e repercussão, alimentando a perspectiva crítica dos anarquistas, com as duas publicações de Yves Lacoste, a primeira denominada de A Geografia, que foi publicada na coletânea A filosofia das Ciências Sociais de François Chatelet , a segunda no livro A geografia isso serve antes de mais nada para fazer a guerra, em que delimita a Geografia de Estado, ou científica, e a Geografia dos Professores. Creio que a dimensão crítica desses autores, mas não apenas, porque o pensamento geográfico brasileiro sempre foi autônomo, o que cabe uma crítica em falar de descolonizar o conhecimento geográfico brasileiro, uma vez que estamos longe de termos sido reprodutores de escolas geográficas europeias, mas o fato é que o debate crítico no Brasil, sobretudo a partir da AGB, procurou fazer com que a Geografia Acadêmica, não fosse hegemonicamente uma Geografia de Estado e esse processo aproximou a produção geográfica da academia da formação de professores e do ensino de geografia, consolidando-o em um patamar crítico e autêntico. Esse processo na verdade, passou a determinar um campo de produção de conhecimento científico, colocando o Ensino de Geografia não como um desdobramento de aplicação, mas um campo de reflexão, de produção do saber geográfico, levado a cabo por inúmeros professores.
Diante do crescente mercado editorial do livro didático e os curtos cursos de formação de professores, o que significa dizer que “o conteúdo não está pronto”?
Gilberto – Em verdade, foi uma decisão de provocação ao debate sobre o conhecimento de Geografia. Veja bem, essa provocação se relaciona muito com esse nosso reconhecimento do Ensino de Geografia como um campo de produção científica, como campo ontognosiológico, no qual o processo de ensino, da aprendizagem e do desenvolvimento não estão prontos, no sentido de acabados, eles estão em movimento. Como partimos de uma perspectiva de que os conteúdos não são apenas os conceitos, a dimensão espacial e territorial dos fenômenos sobre os quais geógrafos e professores de geografia se debruçam, mas também se trata das formas de desenvolvimento de procedimentos de ensino, ou seja, os conteúdos são também procedimentais é importante entender que estes também estão em processo de reflexão e produção. Um exemplo é a cartografia, que não assumimos apenas como uma dimensão conceitual, ela é também procedimental porque determina níveis cognitivos de desenvolvimento da representação, sobretudo nesses tempos em que é necessária uma constante reelaboração das formas de apropriação desta representação com as Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação (TDICs), que impõem elementos críticos e reflexivos constantemente sobre nossa prática docente e de investigação. Por fim, porque os conteúdos também são atitudinais, no sentido de que eles caminham para um compromisso central do fazer pedagógico que trata da genericidade humana, ou seja, trata do processo hominização e humanização dos sujeitos sociais. Isso nos obriga a pensar o processo de ensino, aprendizagem e do desenvolvimento em uma perspectiva ética, de transformação da sociedade, um ponto de referência na leitura do mundo, da geografia e do seu conhecimento, esse ponto de referência é a dimensão de classe, de classe trabalhadora. Todo esse processo coloca o Professor como centralidade ontognosiológica, como centralidade em pensar e fazer geografia, secundarizando o papel do livro didático.
Em que medida que este livro contribui para uma formação crítica do professor de Geografia e na sua prática enquanto professor da universidade?
Gilberto - Não posso garantir que o livro dará uma formação crítica. Esse processo depende dos sujeitos sociais, depende de uma postura crítica do sujeito em relação ao nosso livro, ou seja, se o professor e o pesquisador se colocarem na posição de sujeitos sociais históricos, que realizam efetivas mediações junto às nossas reflexões e se coloquem com capacidade de “estranhar” sua prática pedagógica e científica. Faz muitos anos eu escrevi um artigo com um amigo, que não está mais fisicamente entre nós, Willian Rosa Alves, isso foi em 1992. Naquela época nos já falávamos do pesquisador ser sujeito histórico de seu próprio conhecimento. Não adianta a pessoa citar uma ou outra frase deste livro, ou de qualquer livro que se propõe crítico e pensar que isso basta como intelectual, é preciso mais, é preciso comprometer-se com uma prática realmente transformadora, comprometer-se com seus alunos, com seus problemas, com a realidade social em que vive. Do ponto de vista da prática, esse livro é uma sistematização de reflexões, por certo ele trás uma contribuição de aproximar os debates da Pedagogia com a Geografia, com o pensamento geográfico e a formação de professores, construímos aqui um elemento mediador de processo de ensino e aprendizagem na formação de professores de Geografia e na formação de Pedagogos. Nossa expectativa é que o livro ajude os professores e os alunos a refletirem sobre esse processo e que possamos, Paula e eu, continuarmos construindo reflexões que fortaleçam uma perspectiva libertadora e, por sua vez, de formação docente.
O livro trata da questão do processo formativo de professores, quais elementos você destacaria como importantes nesse processo?
Paula - Destaco a unidade teoria-prática como eixo estruturante na formação do professor, o que parece óbvio, mas ao pensarmos nos processos formativos torna-se fundamental uma análise mais profunda do ponto de vista da relação que o estudante de licenciatura estabelece com o conhecimento e nos faz pensar também na formação como relação social. E é neste sentido, que desenvolvemos no livro questões epistemológicas e ontológicas na formação docente. Pra pensar a unidade teoria-prática, no livro tratamos dos elementos que compõem essa unidade, entendendo-os como categorias analíticas que constituem o método no processo do ensino, por exemplo, o sujeito social e sua dimensão de classe, o currículo escolar, a aula e a unidade entre atividade e avaliação. Pensar cada um desses elementos é compreender a relação do trabalho docente e sua teleologia enquanto prática social e o conteúdo como fundamento crítico na prática de ensino.
A Geografia se vê nos últimos anos como uma disciplina ameaçada no ensino fundamental e médio, quais seriam os prejuízos do abandono desta disciplina na formação dos estudantes?
Paula - A Geografia nos permite analisar as relações presentes no cotidiano de forma ampliada e crítica, quando trabalhada de forma intencional e considerando os elementos que mencionei na pergunta anterior. A Geografia permite repensar o cotidiano, por meio de suas problematizações centradas no sujeito enquanto ser social. Veja, partimos da ideia de que a escola tem papel fundamental no desenvolvimento humano ao criar condições de acesso ao conhecimento e à aprendizagem, sendo assim, o ensino da Geografia permite a leitura do território de forma sistematizada para a compreensão da formação espacial e seus processos de produção e seus agentes sociais, ou seja, uma leitura de mundo longe de ser apenas locacional. Além dos conceitos geográficos, as aulas de Geografia desenvolvem a Cartografia e essa, quando desenvolvida de forma sistematizada como linguagem, permite a formação de alunos leitores e produtores críticos de mapas. Ressalto aqui a Cartografia, uma vez que o uso de mapas tem sido frequente pelas crianças e jovens, o que demanda entender cada vez mais a função social dessas representações e, por meio da Geografia, analisar as informações espaciais e como elas são armazenadas e comunicadas. Essas reflexões são importantes, pois as aulas de Geografia podem favorecer uma visão crítica sobre os mapas que estão frequentemente no noticiário. Entendo que a Geografia no currículo escolar permite desenvolver conteúdos de teor crítico sobre informações espaciais presentes no cotidiano, mas sobretudo possibilita a ampliação do pensamento espacial. Pensar em uma formação de sujeitos conscientes sem a Geografia no currículo escolar é pensar sobre as perdas do sentido de potência da escola para as transformações coletivas.
Ao tratar da questão da formação você e o Professor Gilberto assumem a importância do trabalho docente. Está evidente que vocês se colocam longe do praticismo e do experiencialismo, principalmente porque a todo momento reforçam a questão da formação teórica, metodológica e ética. Assim, do ponto de vista de sua história de vida, reunindo esses elementos teóricos, metodológicos e éticos, como eles definem sua experiência de trabalho como professora?
Paula - A formação do professor é complexa. Essa pergunta me permite afirmar isso, pois entendo que não basta escrever na lousa e o aluno copiar, fazer questões e o aluno responder, dar um mapa e o aluno pintar. Desenvolver uma aula me faz pensar no desenvolvimento humano e no encontro que estabelecemos com o conhecimento, o que se torna cada vez mais fundamental para nossa sociedade visto o antintelectualismo crescente. De fato, o professor não se faz na prática apenas e não basta o “notório saber” para ensinar e problematizar a realidade com as crianças e jovens na escola. A formação do professor demanda a atividade consciente do ato de estudar, o que está presente em meu trabalho enquanto professora. Eu e Gilberto, a cada capítulo que escrevíamos, conversávamos sobre as dimensões de nossas vivências nas escolas e nas universidades pelas quais passamos e este diálogo me permitiu perceber que essas vivências não eram experiências individuais e sim coletivas. Coletivas porque envolvem concepção de sociedade e de escola.