No dia 07 de Outubro de 2024, relembramos 1 ano do início do atual genocídio em curso na Faixa de Gaza, perpetrado por Israel. Em 15/10/24, temos registrado 42.344 mortos em Gaza - embora estima-se que o número real tenha passado 300 mil. No dia 08 de Outubro de 2023, 1 dia após os ataques do Hamas à Israel, o Hezbollah realizou um primeiro ataque contra forças militares israelenses. Inicialmente, foi anunciado que o Hezbollah abriria uma “frente de apoio” - não de guerra - em solidariedade aos palestinos. Após meses de ataques leves e moderados na região da fronteira entre Líbano e Israel, e após o governo israelense não conseguir atingir seus principais objetivos em Gaza (acabar com o Hamas e recuperar os reféns), a estratégia israelense se voltou para o Norte, na fronteira com o Estado libanês, sob a retórica: neutralizar o Hezbollah e garantir que a população israelense retorne para suas casas. A escalada entre Hezbollah e Israel, principalmente após as explosões dos pagers, se tornou inevitável. Nas últimas semanas, assistimos às táticas de destruição e morte aplicadas em Gaza, também contra o povo libanês. Hoje, tomos mais de 2000 libaneses mortos.
- O que é o Hezbollah?
O Hezbollah (Partido de Deus, em português) pode ser compreendido como um ator híbrido e transnacional, que está centrado em três pilares interconectados: braço armado, partido político e rede de prestação de serviços. Seu surgimento data de 1982, quando a Resistência Islâmica Libanesa - nome de sua ala armada - foi criada em resposta à invasão israelense ocorrida naquele ano ao território libanês. Seus membros fundadores foram influenciados pelas ideologias da Revolução Iraniana de 1979, sendo o Irã o seu principal aliado e financiador. Em 1984, a organização definiu o nome Hezbollah e, em 1985, publicou a Carta Aberta, manifesto que simbolizou sua fundação oficial.
A partir da década de 1990, enquanto a ideia de resistência (muqawama, em árabe) contra a ocupação israelense e contra a influência dos Estados Unidos da América (EUA) na região permaneceram no centro de suas prioridades, algumas mudanças significativas ocorreram. Em 1992, após o fim da guerra civil libanesa (1975-1990) e intensos debates internos, o Hezbollah decidiu se estabelecer como um partido político e disputar as eleições parlamentares, sem deixar seu braço armado. A manutenção de suas armas se justificava pelo fato de que, naquele momento, o território libanês ainda estava sob a ocupação isralenese, que permaneceu na região Sul até os anos 2000. Até hoje, existe uma região no Líbano, chamada de Fazendas de Shebaa, que Israel possui bases militares.
Em pesquisa realizada por Roche e Robbins (2024) e publicada no Foreign Affairs, o Hezbollah foi descrito como o ator não-estatal mais fortemente armado do mundo. Internamente, 30% dos libaneses entrevistados afirmam ter "muita ou bastante confiança no Hezbollah". Desta percentagem, 85% são xiitas, destacando a importância desta organização principalmente para esta comunidade, que historicamente foi negligenciada pelo Estado libanês e que são dependentes dos serviços sociais (como escolas e hospitais) que são oferecidos pela organização. Além disso, desde 2005, o Hezbollah atua diretamente no governo através de cargos ministeriais, o que evidencia seu reconhecimento e legitimidade internos. Embora seja alvo de críticas de seus opositores, o seu braço armado também é reconhecido pelo governo. Como exemplo, o primeiro-ministro do Líbano, Najib Mikati, afirmou em 29 de junho de 2024 que “a resistência está cumprindo seu dever”, em referência à atuação armada do Hezbollah contra Israel desde o dia 08 de outubro de 2023. Desse modo, para além de sua ala armada, considerada mais forte que o próprio Exército libanês, o Hezbollah se constitui como uma das principais forças políticas do país.
Em 2019, a Editora Lutas Anticapital publicou o livro “Exército Nacional Libanês: reflexos do confessionalismo na instituição militar”. Acredita-se que, a partir desse material, seja possível compreender a estrutura e a lógica política e social existente no Líbano que contextualiza a criação do Hezbollah, assim como os motivos os quais o exército libanês se evidenciou, historicamente, como um ator limitado e fragilizado para lidar com a segurança do país, lacuna essa deixada e ocupada, desde a década de 1980, pelo Hezbollah.
- Por que o Hezbollah abriu uma “frente de apoio” aos palestinos e ao Hamas?
A chamada questão palestina faz parte da agenda e dos fundamentos do Hezbollah desde sua criação, como se evidencia em seus dois manifestos principais, de 1985 e de 2009. Entretanto, para além da aproximação e solidariedade com a causa palestina, o Hezbollah e o Hamas fazem parte de um mesmo bloco informal, chamado de Eixo da Resistência. Apesar de não ter uma data oficial que demarque sua origem, pode-se dizer que a sua atuação enquanto uma aliança se deu a partir de 2003 quando, no contexto da Guerra ao Terror, o Iraque foi invadido pelos EUA.
O idealizador do Eixo da Resistência foi o comandante iraniano Qassem Soleimani, da Força Quds (unidade de elite do grupo paramilitar Guarda Revolucionária Iraniana). A aliança tem como pilar central o Irã e possui o governo sírio como parceiro estratégico e político. Além disso, inclui atores não-estatais armados da Síria; o Hamas e a Jihad Islâmica, nos territórios palestinos; o Hezbollah, no Líbano; as Unidades de Mobilização Popular (UMP) do Iraque; e os Houthis (ou Ansar Allah), no Iêmen, que foram os últimos a ingressarem no bloco, em 2015. Apesar das divergências entre seus membros, o Eixo se consolidou e tem mantido sua unidade por causa do alinhamento de seus objetivos e bases ideológicas: todos os membros possuem uma agenda anti-Israel e anti-EUA.
O Eixo da Resistência tem se desenvolvido numa coligação em tempos de guerra, como se evidenciou em 2013, durante a guerra da Síria (com exceção do Hamas, que se posicionou contrário ao governo de Bashar al-Assad) e no Iraque em 2014, na luta contra o ISIS ou DAESH. Nessas ocasiões, esses grupos puderam aprofundar suas capacidades militares, principalmente no que concerne aos combates urbanos, e aperfeiçoaram a lógica estratégica de sua aliança. Apesar desse aperfeiçoamento dos membros, o Hezbollah permaneceu como o ator mais armado e preparado militarmente, sendo central para as próprias estratégias de segurança de seu aliado iraniano.
Desse modo, o 07/10 representou um importante marco ao simbolizar a primeira vez que uma coligação composta majoritariamente por atores não-estatais se envolveu diretamente em um conflito em apoio a outro ator não-estatal: o Hamas. Nos últimos 12 meses, o Hezbollah, os Houthis e grupos iraquianos e sírios lançaram ataques contra alvos israelenses e estadunidenses em apoio aos palestinos com um objetivo comum: forçar Israel a um cessar-fogo em Gaza. Desse modo, o envolvimento do Hezbollah na guerra precisa ser compreendido no interior da sua relação com seus aliados - em especial o Irã - e dentro das dinâmicas de poder no Oriente Médio, que tem envolvido atores como os EUA, a China e a Rússia.
Para compreender essas relações de poder e a própria história dos países árabes, recomenda-se a leitura de “Ahlan wa Sahlan: uma introdução aos mundos árabes”, publicado pela Editora Lutas Anticapital em 2021.
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Karime Cheaito é doutoranda em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP), possui Mestrado em Estudos Estratégicos pela Universidade Federal Fluminense e é graduada em Ciências Sociais pela UNESP/Marília. Integrante do GECI-PUC e do Laboratório Nexus (INEST/UFF), tem desenvolvido pesquisas na área de Segurança Internacional, com foco em Oriente Médio, Hezbollah e atores não-estatais armados. É autora do livro "Exército Nacional Libanês: reflexos do Confessionalismo na Instituição Militar" e organizadora do livro "Ahlan wa Sahlan: uma introdução aos mundos árabes"