Entrevista com Prof. Dr. Eliel Machado, autor do livro "Movimentos sociais, democracia e neoliberalismo: questões teóricas e políticas"

Postado por Lutas Anticapital Editora em

Movimentos sociais, democracia e neoliberalismo: questões teóricas e políticas

Eliel Machado
(Professor de C. Política da UEL)


Antes de entrar propriamente nos temas centrais do livro, quais foram as motivações para publicá-lo?

Há pelo menos duas motivações: uma de caráter acadêmico, relacionada às pesquisas sobre os movimentos sociais desenvolvidas na Universidade Estadual de Londrina, mais especificamente junto ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia, e outra de caráter político, que diz respeito ao estágio de desenvolvimento da luta de classes na América Latina, em geral, e no Brasil, em particular. Ainda sobre a primeira motivação, cabe acrescentar que a obra é uma espécie de balanço intelectual dos últimos 20 anos, pois resgato e reformulo artigos publicados em periódicos científicos, enquanto apresento alguns inéditos. Já em relação à segunda, algo que procuro problematizar é a relação entre os diversos movimentos sociais que resistiram às políticas neoliberais implantadas por diversos governos eleitos nos anos 1990 e 2000 e, por outro lado, a “ausência” do movimento operário em diversas frentes de resistência, isto é, mesmo quando esteve presente, foi incapaz de dar direção a tais enfrentamentos.

Diante dessas preocupações, quais são os temas abordados?

São três temas abordados no livro: movimentos sociais, democracia e neoliberalismo. Isso tem uma razão de ser.

Desde que comecei a pesquisar os movimentos sociais, nos anos 2000, um ponto de interrogação me perseguia: por que na academia, em geral, não se fala mais de “movimentos populares”, mas de “movimentos sociais”? O que mudou para alterar o vocabulário dos anos 1970/1980? Será que os primeiros “desapareceram” e deram lugar aos segundos? Ou será a influência europeia em virtude do surgimento dos chamados “novos” movimentos sociais nos anos 1960/1970? Na Europa, alguns intelectuais haviam praticamente decretado o fim do confronto capital versus trabalho com base em um suposto desenvolvimento do capitalismo pós-industrial e, em consequência, do espraiamento do conflito social (cultural) por meio dos movimentos feministas, estudantis, de gays, lésbicas, negros etc. Eles queriam dizer que o “velho” movimento operário, com seus anacrônicos partidos e sindicatos, cedia lugar a “novos” movimentos que demandavam do Estado direitos e não mais o “poder”. A luta de classes perdia centralidade.

Eu rejeito a tese da perda da centralidade do capital versus o trabalho, pois ela ignora não só o aumento do proletariado em outras partes para além da Europa, como também as suas mutações. Por sua vez, é preciso compreender os limites de atuação dos chamados “novos” movimentos sociais, já que a classe operária é portadora não só do trabalho assalariado como também do socialismo. O que procuro debater, então, é a crise político-ideológica do movimento operário, com seus partidos e movimentos, e, em virtude disso, a dificuldade de resistir às políticas neoliberais no subcontinente latino-americano. Em vários casos, quem tomou o protagonismo foram movimentos sociais “fora” daquela centralidade, como os zapatistas no México, os sem-terra no Brasil, os piqueteiros na Argentina, os indígenas no Equador e Bolívia, para citar alguns. Será que esta “ausência” não tem implicações de se vislumbrar um outro tipo de sociabilidade?

Nenhuma revolução foi obra exclusiva do movimento operário, mas produto de alianças com o campesinato pobre e setores da pequena burguesia. No entanto, enquanto portador do modo de produção socialista, ao se “ausentar” dos embates ao neoliberalismo sem apresentar a possibilidade de construção do socialismo, limita a atuação de outros movimentos sociais. Este é o pano de fundo de boa parte das reflexões apresentadas nos diversos capítulos da obra.   

Mas o livro também debate a relação dos movimentos sociais com a democracia e o neoliberalismo. O que isso quer dizer?

O problema é que, na América Latina, em geral, o fim das ditaduras militares implicou na implantação de regimes democráticos junto com políticas neoliberais. Então, levanto como hipótese que as promessas dos líderes democratas de uma vida melhor para a população esbarravam nas políticas de austeridade implantadas por governos neoliberais, eleitos pelo voto popular. Ao contrário do que prometiam, a democracia passava a ser associada à pobreza, ao desemprego, à falta de educação e saúde, ao arrocho salarial, à falta de acesso à terra etc. Na prática, a democracia restaurada parecia levar o povo para o inferno e não para o prometido jardim do Éden, causando-lhe um verdadeiro mal-estar. Mesmo reduzida a um “método” de escolha dos que governarão, as classes populares cobravam para que aquelas promessas fossem cumpridas na lei ou na marra! Estas cobranças vinham dos movimentos sociais. Por isso mesmo, é preciso discutir a relação deles com a democracia e com o neoliberalismo, o que me levou a apresentar outra hipótese: a eleição de governos progressistas, nos anos 2000, pode ter sido produto da resistência popular às políticas neoliberais, ao mesmo tempo em que não deixou de ser um alento para dissipar aquele mal-estar.

O que foram esses governos progressistas?

Em meio à devastação neoliberal que pairava sobre todo o subcontinente latino-americano, temos, a partir do final da década de 1990 e começo da de 2000, a eleição de governos que, em algum grau, questionavam os cânones do neoliberalismo. É bom assinalar que o enfretamento não foi homogêneo, pois nem todos estavam dispostos a romper com ele. Pode-se dizer que os mais ousados foram os da Venezuela, sob Hugo Chávez, e o da Bolívia, no governo de Evo Morales. Os demais, ainda que tivessem críticas, procuraram se adaptar, mudando um ponto aqui e outro ali. O curioso é que muitos desses governos foram perseguidos, condenados e presos por um mecanismo aparentemente legal que ficou conhecido como lawfare. Esse processo se intensificou a partir de 2016, mais ou menos, para o qual dei o nome de “marola reversa”, uma forma de se contrapor à “onda rosa”, como ficou conhecido o período entre 1999 e 2016. A partir de 2020, aproximadamente, presenciamos a retomada de um novo ciclo ou onda, que passou a ser chamada de segunda “onda rosa”, que incluiu os que não estavam na primeira e/ou que não foram derrubados durante aquela “marola”. E, como não podia ser diferente, toda essa discussão exigiu que abordasse o problema do imperialismo na América Latina: se nos anos 1950/1970 ele não tolerou governos desenvolvimentistas, nos anos 2000 não foram tolerados governos progressistas, críticos, em alguma medida, às políticas neoliberais. No primeiro caso, o imperialismo incentivou e financiou golpes militares; no segundo, golpes de Estado brandos, abrindo brecha para ascensão de governos neofascistas, como o de Jair Bolsonaro, em 2019.

É por isso que tem um capítulo que discute o bolsonarismo?

Sim. Nesse capítulo, aproveito para retomar minha formulação sobre “movimentos sociais”: ou se referem à preservação ou à reforma ou à revolução da ordem social existente, considerando que nem todos os movimentos que lutam por reformas são reformistas. A meu ver, esta formulação é importante ao partir do pressuposto de que os movimentos se movimentam e, ao se movimentarem, organizam as massas. Quando se trata de movimentos que lutam para preservar a ordem social existente, eles podem ser compreendidos de dois modos: reacionários e conservadores. O bolsonarismo é um movimento reacionário de massas, um movimento social neofascista, cuja base está assentada em setores da classe média e se mobiliza fundamentalmente, mas não só, por meio das redes sociais. Trata-se de um movimento que retroalimenta as políticas neoliberais, quase não apresentando contradições com elas. Apresentando-se na cena política com relativa autonomia, incube-se de resolver a crise de hegemonia no interior das classes dominantes sem, no entanto, participar diretamente do bloco no poder. Atua com certa independência delas, mas sem ultrapassar os limites impostos por elas, ou seja, a ruptura com o modo de produção capitalista. É essa independência que lhe permitiu tentar mudar o regime político de uma democracia para uma ditadura neofascista como forma de solucionar a crise de hegemonia. Por isso mesmo, os quatro anos de governo Bolsonaro foram permeados de várias tentativas de golpes de Estado, sendo a última cartada no dia 8 de janeiro de 2023, uma semana depois de Lula da Silva assumir o governo, algo parecido com o que Trump fez no dia 6 de janeiro de 2022.

Além desses, quais são outros temas abordados no livro?

Eu destacaria três: uma discussão em torno do lulismo e o que ele representa para os movimentos e organizações de esquerda; faço também uma reflexão sobre a relação partido-movimento e movimento-partido  a partir da experiência política de um movimento social importante na realidade brasileira, o MST; e, por fim, realizo uma análise do “transformismo” do PT, que atingiu um ponto de não retorno às suas origens, ao escalar, a partir dos anos 1990, a luta institucional em detrimento das lutas populares.

Como se vê, o livro não é exclusivamente acadêmico, mas procura dialogar com leitores e militantes fora das universidades. Trata-se de uma pequena contribuição intelectual para compreendermos o estágio atual das lutas sociais na América Latina. Espero que consiga cumprir minimamente este papel.

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Eliel Machado é professor de Ciência Política na Universidade Estadual de Londrina (UEL)

Conheça o livro Movimentos sociais, democracia e neoliberalismo: questões teóricas e políticas