Entrevista com Prof. Dr. Orlando Oscar Rosar autor de Aspectos Estruturais e Históricos do Regime de Metas de Inflação: a experiência brasileira no período de 1999-2018

Postado por Lutas Anticapital Editora em

LAC - Por que se dedicou no seu livro à análise desse período (1999-2018), fazendo destaque da relação entre o Regime de Metas de Inflação (RMI) e o pensamento ortodoxo ainda vigente no Brasil, até os dias atuais?

ROSAR - Não há como tratar do RMI de forma desconectada da ortodoxia econômica, que recrudesceu na Europa dos anos 1980 e na América Latina nos anos 1990. A emergência dessa vertente teórica implicou no desmonte do Estado do Bem-Estar Social nos países europeus e, portanto, na redução da participação do Estado na economia. Na América Latina e, particularmente no Brasil, materializou-se essa vertente, por meio da derrogação do modelo de substituição de importações pela política de abertura comercial, da desregulamentação da conta capital, no início da década de 1990 e do processo de privatização das empresas estatais. Além disso, foram executadas as sucessivas contrarreformas do Regime Geral da Previdência e dos Regimes Previdenciários do Setor Público. Esse conjunto de medidas foi amplamente recomendado/imposto pelos Organismos Multilaterais (FMI, BIRD, OCDE e outros), condicionando a aprovação de empréstimos à implementação de políticas públicas focadas em detrimento das políticas públicas de cunho universal, ou seja, concretizou-se a política ortodoxa em suas diferentes dimensões.

No caso do Brasil, cuja estabilização monetária ocorreu nos moldes da nova geração de Planos de Estabilização propiciada pelo retorno da liquidez em âmbito internacional, o RMI desempenhou um papel relevante, a partir da segunda etapa do Plano Real. Na primeira etapa do Plano, a atração de capitais se fez, preponderantemente, pelo diferencial de taxas de juros interna e externa, estoque de ativos privatizáveis e ações de empresas brasileiras, extremamente desvalorizadas no contexto do início da década de 1990. O esgotamento do estoque de ativos estatais a serem privatizados e a redução da liquidez, em nível internacional, ocorrida, na segunda metade dos anos 1990, determinou a substituição da âncora nominal (dólar americano) pelo RMI. As crises de liquidez da Ásia, Rússia e do Brasil mostraram que o fluxo de capitais não era perene, como a concepção ortodoxa teimava em reiterar. Essas crises que levaram à substituição da âncora nominal pelo RMI, aparentemente, não abalaram os fundamentos do mainstream. No entanto, a intervenção do Estado na economia se ampliou não pelo gasto estatal primário, mas pelo aumento das despesas financeiras. A adoção do RMI no Brasil significa, desde a sua implementação em 1999, a existência de um Banco Central (BC) autônomo, mesmo antes da independência formal da Autoridade Monetária (AM) ocorrida no início da terceira década dos anos 2000.

LAC – Como a adoção do RMI tem condicionado a política econômica no Brasil desde a sua implementação em 1999?

ROSAR - A implementação do RMI, a partir da segunda metade de 1999, significou excluir do debate econômico a possibilidade de existência da inflação pelo lado da oferta (inflação de custos), pois para a ortodoxia a inflação é sempre de demanda, decorrente do excesso de emissão de moeda para a cobertura do déficit público, ou seja, a inflação é um fenômeno eminentemente monetário, razão pela qual a AM, segundo a perspectiva do mainstream, tem que ter autonomia em relação ao poder executivo, pois assim não sucumbiria às pressões pela ampliação dos meios de pagamento. Isso significa que o objetivo primordial da AM é perseguir a manutenção do valor da moeda. Para tanto, tem que gozar de autonomia na consecução desse objetivo, ou seja, liberdade para executar a política de austeridade monetária a despeito da retração da atividade econômica, aumento do desemprego e queda na arrecadação tributária daí advindas. Em suma, o BC mesmo fazendo parte da estrutura organizacional do poder executivo se arroga a competência de total autonomia operacional em relação ao governo.

A execução da política de austeridade monetária mediante a manutenção constante de taxas de juros reais elevadas, com o objetivo de não permitir a ampliação dos meios de pagamento, tem como consequência a expansão dos fluxos de despesas financeiras (juros), que ampliam a dívida pública (estoque). Para que a relação entre a dívida e o produto se mantenha em patamares considerados aceitáveis pelos condutores da política econômica, torna-se imperativa a implantação e manutenção da política permanente de austeridade fiscal. Essa política assegura que a receita supere os gastos primários e possa garantir em parte as despesas financeiras, cujo crescimento não encontra qualquer restrição legal. Ao passo que os gastos primários, destinados à manutenção e expansão da infraestrutura econômica, e todo o financiamento dos demais gastos sociais, como saúde, educação, previdência e assistência social, são restringidos.

Em termos concretos, a obrigatoriedade da geração de superávits primários, nas suas diferentes versões (Lei de Responsabilidade Fiscal, Teto de Gastos e o atual “Arcabouço Fiscal”), obriga os governantes em seus diversos mandatos a se absterem de levar a cabo qualquer política de administração da demanda agregada, bem como de implementar projetos autônomos de crescimento e desenvolvimento social e econômico. De acordo com os defensores do RMI, cabe ao setor público produzir o superávit primário necessário para remunerar os investidores (detentores de títulos da dívida pública), qualquer que seja a taxa de juros, sem permitir que o critério de solvência se deteriore, ou seja, que o coeficiente entre dívida pública e PIB não se expanda ao ponto de gerar desconfiança, por parte dos chamados investidores (residentes e não residentes).

A implementação dessa política se mostra paradoxal, pois ao mesmo tempo que se exige contenção de despesas que tem como consequência a diminuição do nível de atividade econômica e a consequente queda na arrecadação, é cobrada a produção crescente de superávit primário, no contexto de um produto que cresce a baixas taxas ou que nos períodos mais agudos pode apresentar crescimento negativo. Pode-se afirmar que a austeridade monetária leva à necessidade de medidas de contenção fiscal, encadeando um novo ciclo de descenso do produto enquanto as despesas financeiras crescem, exponencialmente, sem levantar questionamentos por parte dos adeptos da ortodoxia, como os próprios agentes públicos, responsáveis pela sua implementação. Em resumo, um processo de ajuste com austeridade monetária e fiscal levam a outro ciclo de ajuste, com o PIB crescendo lentamente ou quando não decrescendo, num verdadeiro ciclo vicioso, em que o Estado, capturado pelo rentismo, é incapaz de romper.

Esse processo de captura do orçamento público pelo rentismo, com a adesão e/ou consentimento do governante, pode não significar estabilidade política, visto que para o capital não interessa apenas o controle sobre a economia do país, de forma a garantir a manutenção e sustentação da riqueza financeira, mas sim o poder político, de fato, sobre o Estado. Isso tem levado a retrocessos com a substituição de governos liberais por mandatários que implementam políticas capazes de fazer retroceder as conquistas e os direitos que expressam avanços civilizacionais. Para os países subdesenvolvidos isso tem significado ameaças e rupturas até mesmo com a chamada democracia liberal, tornando ainda mais distante a perspectiva de construção da democracia substantiva, que, para ser alcançada, não pode prescindir do efetivo controle social do Estado.

O objetivo deste trabalho foi tentar desmistificar o caráter “sacrossanto” da austeridade, com sua pretensa neutralidade, de alternativa única a ser seguida por todos, de imposição de sacrifícios individuais em favor de um objetivo maior, qual seja, o decantado equilíbrio fiscal. Nesse sentido, o que se buscou demonstrar foi que a imposição de tais medidas pelos Organismos Multilaterais, cujo poder é assimétrico, em favor dos países centrais por um lado, e, de outro, impondo a submissão “voluntária” de diferentes governos, nos quais a condução da política econômica buscou sempre não confrontar o capital, mantendo em marcha acelerada o processo de concentração de renda e riqueza, apesar de todo o rol de iniquidades que daí decorre.

A aceitação de maneira pacífica dos ditames da ortodoxia não foi capaz de produzir estabilidade política e social, ao contrário, a permanente austeridade vivenciada desde o início dos anos 1980, como uma espécie de fetiche expresso no dogma: there is no alternative (TINA), de acordo com a expressão de Margaret Tatcher, tem levado ao surgimento do neofascismo e à negação histórica da possibilidade da democracia substantiva.

LAC – A captura do orçamento público pelo rentismo experimentou crescimento contínuo a partir da década de 1980. Com o processo de desintermediação bancária e a crescente financeirização da economia nas décadas seguintes, existe a possiblidade de saneamento financeiro do Estado dentro dos marcos do capitalismo atual?

ROSAR – O desejado saneamento financeiro do Estado, possibilitando que este volte a implementar política fiscal capaz de fornecer infraestrutura econômica e social, ou seja, capaz de relançar a acumulação capitalista nos moldes dos anos, que se seguiram entre 1945 até meados da década de 1970, parece cada vez menos improvável nos marcos do “capitalismo financeirizado”. O novo “new deal” idealizado por regulacionistas, keynesianos ou marxistas, se apresenta cada vez mais distante nesta quadra, em que cabe ao Estado capitalista manter a sustentação da riqueza e valorizar o capital fictício, principalmente a parcela expressa em títulos da dívida mobiliária. Estes títulos que compõem a dívida pública, assim como a emissão monetária,  que tanto têm servido para escandalizar o Estado como um ente perdulário, nada mais são do que mecanismos de acúmulo de riqueza privada, que tem como contrapartida o empobrecimento social, manifestado no não atendimento das necessidades básicas da população, em termos de saúde, educação, assistência social e todas as demais políticas públicas, sob as formas de terceirização/privatização, portanto, de não prestação dos serviços públicos.

O que ocorre é a transformação destes serviços em mercadorias a serem adquiridas por meio de relações monetizadas, transformando o direito à cidadania em relações de consumo, materializadas no mercado que se expande, ao mesmo tempo que produz a atrofia do Estado. Por outro lado, o Estado tem se mostrado hipertrofiado na defesa dos interesses das diferentes frações do capital (pela via das contrarreformas que subtraem direitos socias, precarizam as relações de trabalho e previdenciárias ao mesmo tempo que subsidia o setor privado, socorre o setor financeiro e amplia o espaço para acumulação privada ao reduzir ou eliminar o fornecimento de bens e serviços públicos). Essa manifestação da crise estrutural nos permite afirmar que dentro da ordem do capital não há possibilidade da construção da democracia substantiva, visto que os interesses de classes são diametralmente opostos. A ordem do capital representa a impossibilidade de o Estado atender aos interesses das classes sociais subalternizadas.

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Sobre o autor: 

Orlando Oscar Rosar migrou de Florianópolis para Campina Grande (PB) após concluir sua Graduação em Economia na UFSC. Na Universidade Federal de Campina Grande realizou seu Mestrado em Economia, tendo tido a oportunidade de ter renomados professores de universidades públicas federais,  alguns ex-exilados, que haviam retornado ao país. Cursou Doutorado na Universidade Federal do Maranhão no Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas. É docente do Departamento de Economia da UFMA, desde 1992.