Identidade e profissionalização docente são temas de livro lançado por professor da Unicentro

Postado por Mariana da Rocha em

“Identidade e profissionalização docente: a subordinação do trabalho educativo à lógica flexível da produção capitalista”, eis o título do livro do educador e poeta Saulo Rodrigues de Carvalho.

Lançado pela editora Lutas Anticapital no início de 2022, a obra representa um importante instrumento de crítica às concepções pedagógicas que estimulam e reforçam uma dada “descaracterização alienante do trabalho docente”.

A publicação busca também auxiliar educadores e educadoras a promoverem formas de ação individual e coletiva, visando uma perspectiva de superação da sociedade capitalista em favorecimento de uma sociedade mais humanizadora.

Doutor e mestre em Educação Escolar pela UNESP de Araraquara, Saulo é professor na Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná – Unicentro (campi Guarapuava, Chopinzinho e Pitanga).

Confira abaixo uma breve entrevista com o educador Saulo Rodrigues de Carvalho, concedida ao jornalista Renato S.M em publicação especial para o site da editora Lutas Anticapital:

 

Renato S.M: Saulo, fala para a gente como surgiu a ideia de publicação de seu livro?

Saulo Rodrigues de Carvalho: O livro é uma edição de minha tese defendida em 2016 pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar da UNESP em Araraquara-SP e orientada pela Professora Dra. Lígia Márcia Martins. Resolvi publicar atualmente como forma de ampliar o debate público sobre a formação docente, que nos últimos anos tem se acirrado. Penso que a editora Lutas Anticapital seja um veículo para fazer esse debate chegar à professores, militantes e estudiosos do marxismo. Nele eu discuto a teoria da identidade profissional do professor. Tal teoria reivindica a formação de um novo comportamento da docência, que deve se ater mais a prática em detrimento da teoria e que deve pensar em formar competências profissionais, ao invés de ensinar conteúdos escolares. Discuto no livro que aquilo que é chamado de “identidade profissional” seria, na verdade, uma forma de integração da docência ao funcionamento do capitalismo em crise. A crise estrutural do capital demanda um tipo de relação de trabalho na qual prevalece a “desespecialização” do trabalhador, ao mesmo em que as políticas de cunho neoliberais retiram os direitos trabalhistas. Esse movimento do capital recai sobre a docência exigindo, cada vez mais, que a escola forme trabalhadores multifuncionais (não-especialistas), mas, fundamentalmente, estes trabalhadores precisam aceitar a nova condição do mercado de trabalho, ou seja, um mercado de incertezas e inseguranças. Seria necessário então, ensinar os futuros trabalhadores a serem flexíveis e resilientes. Para isso, também se tornou urgente reduzir os programas escolares, substituir o ensino do conhecimento cultural e científico, por um núcleo de competências treináveis que atendam às necessidades práticas das empresas e correspondam com o ideário da fábrica flexível, da qualidade total, do engajamento profissional, da multiplicidade de tarefas que o trabalhador pode e precisa realizar, na nova gestão da produção. A reestruturação da produção, demandou também uma reestruturação da docência, que tem como característica marcante a ideia de que o professor profissional é aquele que não deve ensinar. Não deve se preocupar com o conteúdo escolar, mas com a formação de competências profissionais, em criar situações problema que estimulem os alunos a buscarem os conhecimentos necessários para resolvê-los. O grande problema disso é que em nome de uma formação para o trabalho, temos uma formação para o desemprego ou quando muito para o trabalho precário; de indivíduos que estarão alijados conhecimento científico e do seu processo de elaboração, para uma nova versão do tecnicismo e do utilitarismo, de saber estritamente o que é necessário para conseguir um emprego, ou continuar nele. Os professores profissionais, segundo essa lógica, deveriam também se “desespecializar”, não mais buscar o aprofundamento do conhecimento de suas disciplinas, não mais um professor de Matemática, de História, de Língua portuguesa, mas um professor generalista, que possa lecionar em amplas áreas do conhecimento (vide a última Reforma do Ensino Médio).

Renato S.M: “A subordinação do trabalho educativo à lógica flexível da produção capitalista”, de que fala seu livro, expõe uma realidade docente em termos gerais em nosso país?

Saulo Rodrigues de Carvalho: Podemos dizer que esta é uma tendência mundial, mas que possui traços particulares, especialmente nas periferias do capitalismo esta subordinação do trabalho educativo vem acompanhada de um discurso perverso da responsabilização da educação pela situação de subdesenvolvimento econômico do país. No Brasil, há por um lado, certo modismo pedagógico que acaba aderindo facilmente às tendências pedagógicas da vez, sem realizar a devida reflexão crítica das mesmas. E por outro lado, há a imposição das políticas governamentais pela adesão das escolas por essas concepções “anti-escolares” e “anti-intelectuais” de ensino, que visam unicamente a adaptação dos indivíduos ao capitalismo flexível, de baixa produtividade e de desemprego estrutural. 

 

Renato S.M: Gostaria que você exemplificasse situações em que o docente se coloca numa posição “alienante” no exercício de seu trabalho de educador.

Saulo Rodrigues de Carvalho: Segundo professor Dermeval Saviani, o trabalho educativo consiste no “[...] ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens”, significa que o trabalho docente deve ser um ato intencional e consciente do professor. Intencional na medida em que ele deve saber previamente o que ele quer atingir com seu ensino e consciente porque ele precisa ter conhecimento dos meios didáticos para atingir essa finalidade. Nisto se concentra a atividade de ensino, na seleção dos conteúdos históricos e culturais para a reprodução da humanidade nos indivíduos, e na escolha dos meios mais adequados para fazer isso. O que implica a necessidade de uma sólida formação teórica e uma relação crítica com sua prática. Quando se apresenta uma concepção de docência na qual o professor não deve ensinar, você separa a docência da sua atividade fim, e passa a formar professores muito mais suscetíveis à reprodução acrítica das ideologias dominantes, ao mesmo tempo em que prepara o caminho para a precarização da docência, que se torna apenas um apêndice da nova tecnificação da educação, através da ideia dominante de que o conhecimento estaria disponível a todos por meio das tecnologias informacionais. Isso permite, como temos visto, o avanço dos modelos privados de educação, mais ainda de modelos tecnocráticos de educação, na qual o professor se torna apenas um tutor das plataformas e aplicativos responsáveis pela formação dos indivíduos. Durante a pandemia isso ficou escancarado: teve o caso da UNIP, que dispensou seus professores pelo WhatsApp e avisou os alunos que as aulas deles já estavam gravadas na plataforma da universidade. Hoje tem muito curso EaD que faz isso, paga uma merreca para um professor gravar um conjunto de aulas e fica reutilizando este material por anos, no lugar de professores contratam tutores que vão auxiliar os alunos com as dúvidas técnicas para a utilização dos recursos tecnológicos, mas que na maioria das vezes, não têm formação suficiente para explicar os conteúdos relacionados pelo curso.

Renato S.M: Como a “superação da sociedade capitalista em favorecimento de uma sociedade mais humanizadora” deve ser encarada por educadores e educadoras, considerando um ideal de educação que seja – nos desculpe a redundância – “libertadora”?

Saulo Rodrigues de Carvalho: A razão de ser da sociedade capitalista é a acumulação privada do lucro, que só pode se realizar sacrificando-se uma quantidade enorme de seres humanos. Na última pesquisa divulgada pela Oxfam, 1 % da população mundial detinha o equivalente de riqueza dos outros 99% da população, grande parte da população mundial sobrevive em níveis miseráveis de vida. Isso significa também que uma grande parte das pessoas no capitalismo possui níveis baixíssimos de apropriação da riqueza cultural produzida pela humanidade. Grande parte da população mundial no capitalismo só consegue se apropriar do mínimo necessário para sua sobrevivência na sociedade, o capitalismo é uma verdadeira “máquina de moer de gente”. Sem contar que a sua forma de reprodução tem colocado em risco todas as formas de vida no planeta. Logo não dá para pensar uma educação emancipadora que tenha como objetivo a reprodução das leis capitalistas para a produção da vida. Ao mesmo tempo não dá para pensar também num retorno à vida natural, a uma inocência perdida, é preciso pensar na construção da nova vida social a partir do próprio legado do capitalismo. Foi o que Marx preconizou com seus escritos, a sociedade comunista seria uma construção a partir das possibilidades de produção em abundância assentadas pelo capitalismo, seria preciso então reorganizar a sociedade de modo que a produção social seja disposta para suprir as necessidades humanas e não para produzir o lucro dos capitalistas. Isso demanda uma nova relação dos indivíduos com o trabalho e com o conhecimento. Uma relação consciente com o trabalho, um trabalho criador e não mais alienado e uma educação emancipadora e não mais uma educação instrumentalizada pelo capital para a formação de força de trabalho. Penso dessa forma, que uma identidade docente preocupada com a formação da humanidade em cada indivíduo, precisa ser comprometida também com construção de uma sociedade para além do capital, uma sociedade que possa objetivamente garantir que todo ser humano possa se apropriar de toda riqueza material e espiritual para a constituição de uma vida plena de sentido.