Sobre os contratos milionários da Seduc-PA: quando a educação se transforma em mercadoria – Luciana Sardenha Galzerano

Postado por Lutas Anticapital Editora em

Sobre os contratos milionários da Seduc-PA: quando a educação se transforma em mercadoria

Luciana Sardenha Galzerano

A reportagem e denúncia do Intercept Brasil sobre os contratos milionários firmados entre a Secretaria de Educação do Estado do Pará (Seduc-PA), sob comando de Rossieli Soares, e o grupo empresarial Somos Educação para o fornecimento de materiais didáticos reacende o alerta sobre os impactos da financeirização na educação pública brasileira.

No livro “Educação à venda: ação empresarial e financeirização no Brasil”, analisamos a trajetória e a atuação da Somos Educação, demonstrando que a financeirização de suas atividades a partir de 2011, quando foi listada em bolsa de valores, intensificou os processos de concentração e centralização de marcas e negócios no ramo, potencializou os lucros e aumentou sua presença na educação pública, principalmente por meio da comercialização de materiais didáticos. O potencial de mercado angariado pela Somos não foi intensificado pela mera livre iniciativa privada, defendida amplamente pela lógica neoliberal, mas pela apropriação de parcelas do fundo público advindas justamente de contratos como aqueles firmados pela Seduc-PA. 

A atuação da Somos Educação está relacionada à demanda crescente de uma ação mais ativa do Estado na gestão do fundo público, principalmente em períodos de crise. Na fase contemporânea do capitalismo, observamos uma reversão gradativa de conquistas e direitos sociais por todo o mundo, justificada ideologicamente pela suposta necessidade de redução estatal (e de seus gastos sociais) e da consequente ampliação de seu controle pela lógica empresarial. O resultado disso é a adoção de sucessivos ajustes fiscais, que hierarquiza os gastos públicos ao priorizar o credor financeiro; os aportes financeiros em serviços da dívida pública seguem intocáveis enquanto as políticas sociais são severamente punidas com congelamento de gastos e tetos fiscais. Abre-se, assim, cada vez mais espaço para o fortalecimento da dimensão coercitiva e repressiva do Estado.

A imbricação entre o Estado e os grupos empresariais é fundamental para garantir a produção e realização de valor (e mais-valor) em todos os espaços da vida social, incluindo a educação pública. A célebre equiparação de Marx entre fábricas de salsichas e fábricas de ensino ecoa na contemporaneidade, pois a educação se transforma em mais um meio para a acumulação do capital. No caso da Somos Educação, seus controladores não hesitaram em afirmar que o objetivo da empresa era garantir a lucratividade de seus acionistas.

No campo educacional, porém, o conteúdo veiculado pelos materiais didáticos importa. As escolas constituem locais privilegiados na transmissão de conhecimentos, valores e ideologias, por isso seu papel segue sendo reforçado para a manutenção da hegemonia burguesa. Soma-se aos interesses mercantis, a tentativa empreendida por grupos empresariais de controlar toda a organização do trabalho pedagógico e, particularmente, de seus currículos.

A aprovação da Base Nacional Comum Curricular tende a atender a esse duplo interesse burguês: lucro e controle ideológico. Mas as atuações se espraiam para alcançar de modo eficaz as redes municipais e estaduais de ensino. Os contratos firmados pela Seduc-PA são um exemplo disso. Além do angariamento de mais R$500 milhões do fundo público por parte da Somos Educação, destacamos o conteúdo dos materiais, direcionados ao treinamento de estudantes para as avaliações de larga escala, com substituição do trabalho docente pela inteligência artificial na correção das redações.

No caso da educação do Pará, não se pode desconsiderar o lobby empreendido pelo De Olho no Material Escolar, movimento empresarial vinculado ao agronegócio, que busca alterar os materiais didáticos para apresentar os supostos benefícios propiciados pelo setor, ao custo de apagar questões relacionados ao desmatamento e dizimação de povos indígenas. Não por acaso, a Lei Estadual 10.820, aprovada pela Assembleia Legislativa do Pará em dezembro de 2024, precarizava justamente a política de educação indígena, prevendo, dentre outras medidas, a substituição das atividades presenciais por aulas online ou gravadas.

As manifestações, greve e ocupação da Seduc-PA por professores, comunidades tradicionais e povos indígenas conquistaram a revogação da Lei, demonstrando a importância da articulação das lutas educacionais às lutas sociais mais amplas para barrar a subsunção da educação pública à lógica do capital.

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Luciana Sardenha Galzerano é pedagoga e Mestre em Educação pela Universidade Estadual de Campinas e Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo. Tem se dedicado aos estudos e pesquisas sobre políticas educacionais, com foco nos processos de privatização da educação básica. Autora de "Educação à Venda: ação empresarial e financeirização no Brasil" (Lutas Anticapital, 2022) e "Políticas Educacionais e a Base Nacional Comum Curricular: projetos em disputa" (Lutas Anticapital, lançamento em março de 2025).