Leia a seguir uma entrevista com os autores do livro Léxico pachukaniano, que se propõe a introduzir o leitor no pensamento do jusfilósofo russo E. B. Pachukanis (1891-1937) e, ao mesmo tempo, demonstrar a atualidade da crítica desenvolvida em sua principal obra, A teoria geral do direito e o marxismo (1924). O livro reúne 14 verbetes escritos pelos pesquisadores brasileiros Carolina de Roig Catini, Celso Naoto Kashiura Jr., Flávio Roberto Batista, Gabriel Martins Furquim, Márcio Bilharinho Naves, Oswaldo Akamine Jr., Pablo Biondi e pelo italiano Carlo Di Mascio. Traz ainda dois textos de Pachukanis inéditos em português: o artigo “Os primeiros meses da existência do Tribunal Popular de Moscou” e uma resenha do terceiro volume do Arquivo K. Marx e F. Engels, organizado por D. Riazánov, em 1927.
Tarso de Melo
TdM – Você é professora e pesquisadora da área de Educação. No livro, você ficou encarregada por um verbete central, “forma jurídica”. Como seus estudos sobre Educação levaram a Pachukanis? E ainda: qual a importância da perspectiva crítica aberta por ele para pensar temas que vão além do direito?
Carolina de Roig Catini – A educação, assim como o direito, está envolta em mistificações ideológicas. Em parte, isso se dá, exatamente, porque a educação existe sob a forma do direito. Cheguei a Pachukanis buscando responder questões que, ao meu ver, permaneciam em aberto em boa parte da teoria marxista da educação, na qual a crítica se paralisa diante do direito e do Estado, apresentados de modo positivo e sem contradições, como se fossem o oposto do próprio capital. Com isso, é como se a educação massiva, por exemplo, ainda não tivesse realizado a igualdade social prometida, por ter sofrido desvios em sua condução política por ter se tornado parte dos interesses da classe dominante. Isso não é mentira, mas cria uma ilusão, pois é apenas parte do problema da educação no capital. Na lei, a educação aparece como “direito subjetivo”, ao mesmo tempo em que permite que seja realizada de dois modos distintos: pelo direito privado, para quem pode pagar pelo serviço e, de outro modo, que se dirige à maior parte da população que necessita da educação como formação da força de trabalho que vai circular como mercadoria. Desde Marx sabemos que o segredo das relações sociais está na forma mesma, e que a totalidade do capital é formal, na medida em que ele não apenas subordina as relações, mas as subsume e em seu impulso totalitário faz com que tudo tome sua própria forma. Pachukanis fez um trabalho teórico fundamental ao extrair d’O Capital as consequências do direito subsumido ao capital, como meio de circulação das mercadorias, expressão superficial das profundas relações de produção e exploração, desmistificando a forma jurídica. Nos cabe abordar os desdobramentos dessa análise nos diversos momentos da vida social, como é o caso do direito à educação, o que na atualidade ganha ainda mais relevância, dada a radicalidade das mudanças em curso, que passam por transformações ou obsolescência de direitos sociais, nos lembrando que são formas históricas e que a noção de subjetividade jurídica é pura ideologia.
TdM – Os dois verbetes que ficaram a seu cargo no Léxico – “Moral” e “Sujeito de direito” – me parecem complementares, porque abordam, por ângulos diversos, categorias que são centrais para entender o pensamento de Pachukanis e, assim, a profundidade de seu corte com relação à teoria tradicional do direito. Podemos dizer que a teoria de Pachukanis, ao expor conexões concretas entre sujeito, subjetividade e sujeição, permite rever completamente as relações entre direito e moral?
Celso Naoto Kashiura Jr. –Se considerarmos que a concepção mais usual da relação entre direito e moral é aquela derivada de Kant, isto é, aquela que entende que o dever jurídico é uma espécie de “setor” (mais restrito) do dever moral (mais amplo), a resposta é certamente sim. Essa concepção toma a moral em altíssima conta – e não por acaso: a moralidade é vinculada a uma liberdade interior, que só pode ser metafísica, e serve, nesse sentido, como demonstração de uma suposta dignidade intrínseca à humanidade. Pachukanis não apenas apresenta a crítica materialista mais evidente a esse entendimento – a denúncia de que não há nada de natural ou de espiritual na moralidade –, mas dá ainda um passo adiante ao aproximar a subjetividade moral e a subjetividade jurídica. O núcleo de A teoria geral do direito e o marxismo, em estreitíssima conexão com os escritos de Marx da maturidade, reside justamente na demonstração de que a subjetividade jurídica é a forma social especificamente capitalista pela qual o trabalhador pode submeter-se voluntariamente ao capital, numa relação de troca entre força de trabalho e salário. A condição de sujeito de direito é, portanto, a do assujeitamento, realizado num acordo entre vontades abstratamente livres e iguais, do trabalhador, constituído como proprietário e vendedor de sua própria capacidade de trabalho, ao capital. A subjetividade moral, por seu turno, é uma interiorização de certas determinações fundamentais da subjetividade jurídica, especialmente do atributo da igualdade formal, e está, nesse sentido, circunscrita ao mesmo processo de assujeitamento do trabalhador. Pachukanis nos permite notar, então, que suposta dignidade intrínseca que a concepção tradicional relaciona à moralidade é, em última medida, a dignidade do portador de uma vontade livre, esse “presente raro” que permite a submissão do vendedor da força de trabalho. Ou, noutras palavras, a dignidade de ser capaz de vender, como um ser livre, a própria pele no mercado – e só poder esperar, a seguir, o curtume.
TdM – Seu verbete sobre “Estado proletário” começa lembrando uma pergunta feita por Pachukanis em 1936: “Se na URSS os elementos capitalistas foram realmente eliminados, e foi construída uma sociedade sem classes, então, por que o Estado é conservado?”. No entanto, você lembra que Pachukanis, à época, sob o terror stalinista (que o vitimaria logo depois), não poderia dar a resposta que gostaria a essa pergunta. Qual seria essa resposta, a partir do que encontramos nos seus textos dos anos 1920, antes, portanto, de ser “constrangido” ao stalinismo? O que essa reflexão sobre o Estado proletário nos ensina sobre outra questão importante para o pensamento de Pachukanis – a extinção do direito e do Estado numa sociedade não capitalista?
Márcio Bilharinho Naves – O que está oculto nesta pergunta de Pachukanis é o próprio princípio marxista-leninista da extinção do Estado (e do direito) no decorrer de uma transição socialista. Em seu texto sobre o burocratismo soviético – “O aparato de Estado soviético na luta contra o burocratismo” – ele já sustentava a necessidade da apropriação efetiva do poder político pelas massas, chegando mesmo a considerar que estas devem encetar uma luta contra o seu “próprio” Estado (nominalmente “proletário”), inclusive por meio de um “ataque frontal” contra ele. Essa sua posição é coerente com A teoria geral do direito e o marxismo, no qual ele afirma a impossibilidade de que o Estado e o direito possam ser dotados de um conteúdo socialista.
TdM – Seu verbete sobre “ideologia jurídica” identifica usos diferentes e até mesmo contraditórios desse conceito em Pachukanis. Em outras palavras, demonstra que a principal contribuição do autor para o debate sobre ideologia e direito não está no capítulo específico de A teoria geral do direito e o marxismo, mas sim dispersa em outros capítulos e até mesmo em textos esparsos. Você poderia recompor aqui o percurso da sua investigação sobre a ideologia em Pachukanis, que acaba por conectá-lo com as ideias de Althusser e Edelman, de cinco décadas depois?
Flávio Roberto Batista –A ideologia foi minha escolha de tema de pesquisa quando ingressei na carreira docente da Universidade de São Paulo. Havia esbarrado nele várias vezes ao longo do doutorado e pensei ser o momento de um estudo mais profundo a seu respeito. Nesse contexto, em uma das releituras de A teoria geral do direito e o marxismo, percebi a completa ausência de sistematização do conceito e tomei como tarefa buscar “completar” esse aspecto da obra de Pachukanis. Althusser e Edelman surgiram como a resposta mais adequada a esta tarefa, porque, a meu ver, representam o estágio mais avançado da teoria da ideologia na tradição marxista, no sentido de ser a elaboração mais afastada do individualismo metodológico e, portanto, a mais adequada ao materialismo histórico-dialético. A rigor, como o debate sobre ideologia foi atrapalhado pelo atraso de quase nove décadas na divulgação de A ideologia alemã e, depois, pelo excesso de dogmatismo entre adeptos das distintas tradições teóricas do marxismo, entendo que ainda está por se constituir completamente uma teoria da ideologia na tradição marxista. Althusser e Edelman, além de outros autores franceses da época, especialmente Nicole Edith Thévenin, representam um primeiro passo decisivo, mas não esgotam a questão, não a levam a suas últimas consequências. Creio que pude dar outro passo relevante nesse caminho ao demonstrar, por um lado, que a teoria de Pachukanis é consentânea com a teoria da ideologia da tradição althusseriana e que é possível estabelecer esse diálogo ainda que com cinco décadas de distância; e, por outro lado, que esse diálogo é bilateral, ou seja, que a crítica da forma jurídica também tem muito a acrescentar à teoria da ideologia, mais uma demonstração do assombroso gênio de Pachukanis. A descoberta posterior dos textos de Pachukanis sobre o Estado, até 2017 disponíveis somente em russo, confirmam, a meu ver, o acerto dessa postulação e levaram à elaboração do verbete sobre ideologia jurídica do Léxico Pachukaniano, buscando revelar uma continuidade entre a elaboração de Pachukanis sobre a ideologia no contexto da teoria do direito e da teoria do Estado. Entendo que Pachukanis, se pudesse ter lido Edelman, concordaria com essa aproximação.
TdM – Como a especificidade capitalista do direito penal pode ser demonstrada a partir da identificação entre forma jurídica e forma mercantil feita por Pachukanis? De acordo com as ideias do autor russo, restará algo parecido com o direito penal numa sociedade em que o capitalismo seja superado?
Gabriel Martins Furquim – Pachukanis demonstra a relação entre forma jurídica e forma mercantil, para comprovar que o direito é historicamente determinado pelo modo de produção capitalista. Ampliando esta compreensão, o autor russo afirma a especificidade do direito penal e do sistema punitivo a partir da relação de equivalência, a qual se origina da forma de mercadoria, possibilitando quantificar, ao mesmo tempo, o trabalho socialmente necessário e a pena, como restrição de um determinado tempo. No modo de produção capitalista, a restrição da liberdade, por determinado tempo, é a pena por excelência. Este movimento está condicionado à consolidação do modo de produção capitalista, isto é, com a subsunção real ao capital e a consolidação do trabalho abstrato. Assim, o direito penal concretiza a retribuição equivalente, sendo reflexo da troca de mercadorias. Mas de uma maneira diferente, uma variedade particular de circulação, havendo uma relação entre contrato, crime e delito. Como apontado no verbete, “a punição opera de forma equivalente, assim como a específica relação de troca não precede à ocorrência do delito, mas é posteriormente estabelecida como consectário da equivalência” (p. 36). A isso se vincula o direito penal e a punição, que figura como equivalente geral nesta relação particular de troca com o delito, observando que as consequências compõem o fenômeno jurídico. Ademais, o autor russo demonstra que o direito penal ou quaisquer outras formas parecidas se limitam a época histórica do capitalismo. A extinção do direito, como um todo, está atrelada à superação das relações de produção capitalistas. Estas são essenciais ao sistema punitivo, porque o determinam. Como consequência, está obstada qualquer possibilidade de substituição do direito penal e das formas punitivas numa sociedade em que o capitalismo seja superado.
TdM – Sua experiência docente (em Introdução ao Estudo do Direito e História do Direito) é basicamente com alunos dos primeiros anos do curso, momento em que esses estudantes tomam contato e vão sendo moldados pelo discurso do direito sobre si mesmo. Lendo os três verbetes de sua autoria no Léxico – “fetichismo jurídico”, “norma jurídica” e “propriedade” – me lembrei disso porque há várias referências à distância entre o que as teorias tradicionais do direito afirmam e o que o pensamento de Pachukanis, gestado na leitura rigorosa de Marx. Podemos dizer que as ideias de Pachukanis operam uma espécie de “desfetichização” do direito? Há espaço para essa “desfetichização” na formação dos estudantes de direito? Ou ainda, a formação jurídica suporta uma crítica tão aguda dos pilares e máscaras de seu objeto principal – a norma jurídica?
Oswaldo Akamine Jr. – A formulação da sua questão é muito interessante; em certo sentido, ela expressa um debate central no marxismo, que não se limita, claro, à seara do Direito: sua pergunta invoca uma possível relação entre “fetichismo”, “reificação” e “alienação”. Existem leituras da obra de Marx que aprofundam essa temática, propondo uma espécie de percurso que teria início num certo criticismo humanista e que ganharia maturidade na crítica da economia política; um caminho que implicaria a superação de uma crítica particular para uma da totalidade concreta. Sob essa perspectiva, apresentar a obra de Pachukanis para estudantes que estão se iniciando na ciência jurídica seria importante como uma maneira de fazê-los perceber a posição do Direito na estrutura social. Desse modo, essas noções caras à dogmática jurídica - em especial a de normatividade jurídica – talvez pudessem ser, digamos, “descontruídas” ou, ao menos, esvaziadas do caráter de neutralidade. Em um contexto de questionamento do capitalismo, lastreado em um processo de “desalienação” – ou “desfetichização”, como você sugere –, o escrutínio da forma jurídica teria, então, um papel importante na compreensão da realidade social e no combate à ideologia burguesa.
Particularmente, minha leitura é diferente. Penso que a seção do fetichismo da mercadoria, que é uma das passagens mais fecundas e polêmicas d'O Capital, trata da dinâmica específica de naturalização das relações sociais de produção no capitalismo. Pachukanis, creio, apresenta o “fetichismo jurídico” como uma dimensão desse processo. E esse entendimento é decisivo em seu pensamento porque lhe permite compreender que a forma “sujeito de direito” é o eixo a partir do qual se pode compreender, numa ótica jurídica, a troca da força de trabalho pelo salário, como desdobramento da universalização do valor. Por meio desse entendimento, é possível, então, denunciar o estatuto ideológico da identidade entre “Direito” e “norma jurídica” e, sobretudo, compreender a especificidade da noção de “propriedade”, elemento da subjetividade expressado no corolário “forma jurídica”.
Apresentar essas ideias, seja para o estudante que se inicia no estudo do Direito, seja para aquele que já está familiarizado com as categorias da crítica marxista, é sempre difícil. Muito difícil. Mas é precisamente por isso – pelas complexidades dos temas e dos caminhos do exame – que um léxico pachukaniano é necessário: não para transigir, vendendo como simplória uma realidade sofisticada, mas para apoiar o enfrentamento firme e tenaz da ideologia burguesa e do próprio capitalismo.
TdM – Você afirma, no verbete “Contrato”, que “o arcabouço teórico pachukaniano nos permite entender que é precisamente essa contratualização da sociedade, lastreada na produção de mercadorias em escala generalizada (que ocorre a partir da mercantilização da força de trabalho), que constitui a forma jurídica como tal na modernidade capitalista”. Ao tratar da “relação jurídica”, encontramos novamente a centralidade da forma contratual em todos os níveis das relações sociais na sociedade burguesa: “se a troca de mercadorias é a referência básica das relações econômicas no capitalismo, tem-se que o contrato emerge como o envoltório elementar dessas relações, como a forma necessária de um tipo de intercâmbio em que as partes objetivamente se consagram como sujeitos de direito”. Nesse sentido, o que Pachukanis nos ensina sobre a persistência de teorias políticas fundadas na ideia de contrato social?
Pablo Biondi – A teoria de Pachukanis demonstra que a recorrência de teorias políticas de viés contratualista não é casual, sendo antes uma reiteração ideológica das bases materiais de uma sociedade que, ao se organizar em torno da produção generalizada de mercadorias, está fadada a hipostasiar o intercâmbio mercantil-contratual, tomando-o não apenas como a única forma possível de sociabilidade, mas também como a fonte inspiradora das concepções de legitimidade política. O contratualismo, portanto, mais do que uma visão liberal de mundo, é um atributo de todas as formas burguesas de pensamento político que se apresenta em maior ou menor medida a depender da teoria em questão. Por óbvio, esse atributo contratualista aparece com uma coloração mais forte nas teorias mais liberais, cujo mote é a centralidade do indivíduo enquanto agente que encontra nos demais indivíduos apenas um meio para a consecução de seus fins, e que vê na sociedade como um todo, representada pelo Estado, apenas uma instância de proteção da sua subjetividade jurídica (liberdade, igualdade e propriedade). Mesmo uma versão mais "social-democrata" desse tipo de teoria, como é o caso do liberalismo igualitário de John Rawls, recorre a um contrato originário enquanto método que se pretende imparcial para a definição dos princípios de justiça. A racionalidade do pensamento burguês, portanto, pressupõe indivíduos que travam relações jurídicas à maneira de um contrato, de modo que o compromisso do agente depende de uma reciprocidade pactuada, de um consentimento presumido sobre as obrigações de cada um ou sobre as "regras do jogo". Como resultado, forma-se a miragem na qual tudo quanto existe na sociedade repousa sobre convenções, sobre acordos gerais das pessoas a respeito de práticas, relações e instituições. O que a teoria pachukaniana revela, porém, é que somente uma sociedade baseada na radicalização da divisão mercantil do trabalho, como é o caso da sociedade capitalista, é capaz de formular sobre si mesma uma leitura que descreve o tecido social como a simples soma de indivíduos ou de ações individuais, como se o mundo em que vivemos fosse apenas o produto de nossas escolhas particulares, ou como se a única racionalidade política possível fosse aquela que se baseia em agentes racionais abstratos. De um modo ou de outro, a abordagem contratualista oculta as relações socialmente necessárias e as determinações históricas que são próprias de um dado modo de produção.