Confira a entrevista com João Paulo Hadler, autor de Dependência e superexploração

Postado por Mariana da Rocha em

O livro Dependência e superexploração aborda a polêmica travada entre Fernando Henrique Cardoso e Ruy Mauro Marini nos anos 1970. Em que contexto se deu esse debate?

O debate se insere no movimento de revisão das interpretações sobre o desenvolvimento brasileiro após o golpe de 1964. Até então, o pensamento crítico brasileiro esteve às voltas com os dilemas da formação nacional, o problema de como construir o Brasil moderno a partir de uma marcada herança da formação colonial e escravista, expressa na segregação social e na dependência externa. Na disputa pelas reformas estruturais e pelo desenvolvimento nacional, alimentavam-se as esperanças de que se concretizasse a revolução brasileira, levando a um regime democrático e a um desenvolvimento capitalista nacional. O problema do desenvolvimento ficava então condicionado à solução desses problemas históricos de uma sociedade nacional em construção. Mas as esperanças foram frustradas, a começar com a conquista do mercado interno pelo capital internacional, inaugurada com o Plano de Metas de JK, e especialmente com a ditadura, que derrotou a luta pelas reformas e pela democratização da sociedade brasileira. Só que o aparente êxito do salto industrializante e do alto crescimento do “milagre econômico”, junto com a repressão, o colonialismo cultural e as pretensões de “Brasil Potência”, contribuíram para o abandono da perspectiva da formação nacional no tratamento dos problemas do desenvolvimento brasileiro. O Brasil parecia ter se dotado de um desenvolvimento capitalista vigoroso e dinâmico, ainda que dependente e concentrador da renda. Então, a disputa entre FHC e Marini é parte dos esforços de interpretação dessa nova realidade, em torno dos limites e possibilidades do desenvolvimento capitalista no Brasil, entre reforma e revolução.

 

Fernando Henrique Cardoso se notabilizou, como sociólogo, com o livro Dependência e desenvolvimento na América Latina. Qual era a tese defendida por ele?

Nessa e em outras obras, FHC desenvolve a ideia de que a dependência havia deixado de ser um obstáculo ao desenvolvimento, a partir do momento em que o IDE passou a se digirir aos setores industriais, com o interesse do capital estrangeiro em ocupar o mercado interno. Teria se colocado a possibilidade de conciliar desenvolvimento econômico com dependência externa, porque o avanço da industrialização teria se tornado interesse do próprio imperialismo. Dado esse interesse, supunha-se que se criaria uma solidariedade entre capital internacional e espaço econômico nacional. Com isso, modernizando-se a estrutura produtiva e as relações de produção, se criariam bases materiais para elevar o nível de vida da população e superar formas anacrônicas de exploração, dispensando qualquer necessidade imanente de superexploração da força de trabalho ou de marginalização social. A indústria passaria a ser importante mercado para a própria indústria, pelos investimentos, dispensando, do ponto de vista do desenvolvimento capitalista, a reforma das estruturas sociais, a erradicação das desigualdades, já que a acumulação não dependeria mais do consumo ampliado das massas. Então, não haveria limites objetivos para conciliar desenvolvimento, dependência, democracia e Estado de bem-estar. O limite estaria na esfera da política. Superestimando a autonomia relativa da política, FHC abre espaço para a reforma do capitalismo na periferia do sistema, pela via institucional, a depender do arranjo, da aliança de forças políticas favorável. A ditadura e as tendências autoritárias seriam apenas contingenciais, superáveis com a “redemocratização” e reativação da “sociedade civil”.

 

Qual era a interpretação de Ruy Mauro Marini sobre o capitalismo brasileiro? Que papel desempenharia a chamada superexploração do trabalho?

Para Ruy Mauro, o Brasil ingressava em uma nova fase do capitalismo dependente que reforçava a necessidade estrutural da superexploração do trabalho. A superexploração, uma remuneração da força de trabalho abaixo do seu valor, seria uma necessidade para as economias periféricas, um mecanismo para compensar as perdas de valor sofridas pelas burguesias débeis nas suas relações com os capitais externos e com os países imperialistas. Em Marini, a explicação para  a permanência das grandes desigualdades sociais e da situação de dependência se encontra nas próprias leis imanentes do modo de produção capitalista, em seu desenvolvimento desigual e contraditório em escala mundial, na própria lógica do capital, em seu movimento de expansão e acumulação em escala mundial. Então, ainda que houvesse acumulação capitalista e desenvolvimento das forças produtivas sob a industrialização, tratava-se de um padrão de acumulação que bloqueava qualquer possibilidade de reforma do capitalismo brasileiro, de equacionar os dilemas históricos da classe trabalhadora brasileira dentro do capitalismo. Como a superexploração seria estrutural, não haveria nenhuma possibilidade de que florescesse a democracia burguesa e o bem-estar social no capitalismo dependente, pois a acumulação dependente não poderia abrir mão da exclusão e da deterioração das condições de vida e de trabalho da população. Isso faria desse capitalismo um sistema profundamente antissocial e antidemocrático, no qual se radicalizavam as contradições típicas do modo de produção capitalista, deixando a revolução socialista como única solução para os trabalhadores.

 

Poderia comentar brevemente os limites do debate que são apresentados no livro?

No caso de FHC, a possibilidade da reforma estava assentada na crença de que o capital internacional promoveria um capitalismo moderno e dinâmico, assim como na superestimação da autonomia relativa da política. Mas ele subestima o sentido da dominação imperialista e o caráter especulativo do capital internacional, assim como as implicações da precariedade da conjuntura mercantil e da instabilidade estrutural do subdesenvolvimento sobre a redefinição dos nexos do capital internacional com nossa economia. E sem uma análise de classe que elucidasse o padrão de luta de classes no capitalismo brasileiro e, assim, a forma pela qual se estabelecem os nexos entre economia, sociedade e política, FHC reduz a luta de classes a um jogo político indeterminado. A História aparece como processo em aberto, a depender da vontade política e da criatividade dos atores, do arranjo de forças políticas em cada momento. Já em Marini, o principal problema está em explicar a necessidade da superexploração a partir da operação da lei do valor e da lógica da acumulação em escala mundial, diluindo as nossas especificidades históricas. A necessidade da revolução brasileira, de caráter necessária e imediatamente socialista, é afirmada a partir da contradição geral e abstrata entre capital e trabalho, radicalizada pela presença da superexploração estrutural, sendo assim regida por uma lógica da acumulação independente da luta de classes concreta e da processualidade histórica. Não partindo das condições históricas concretas em que o Brasil e a América Latina se integraram ao sistema internacional do capitalismo, das contradições próprias de uma sociedade de origem colonial e escravista e de posição periférica, Ruy Mauro fica sem condições de encontrar os elos intermediários que compõem a revolução brasileira como processo histórico.

 

Qual a importância de recuperar uma polêmica da década de 1970 nos dias de hoje?

Os tempos mudaram, mas o Brasil acumulou vários problemas decorrentes da não superação do subdesenvolvimento e dos nossos dilemas históricos de formação, agravados sob a globalização dos negócios e a crise estrutural do capital. Então, é pertinente a recuperação do debate sobre as questões estruturais que pensadores brasileiros e latino-americanos trouxeram à tona no passado, ao buscar a compreensão e as vias de superação do subdesenvolvimento. A leitura de Marini e Fernando Henrique, mas também de Caio Prado, Florestan Fernandes, Celso Furtado, Nelson Werneck Sodré, entre tantos outros, pode contribuir para iluminar os dilemas do Brasil hoje, tanto mais após décadas de proscrição do debate sobre os temas da formação, tanto pela contrarrevolução prolongada quanto pela hegemonia neoliberal. Mas deve ser uma leitura crítica, mediada pela historicidade dos problemas, pelo primado da História e pela perspectiva de classe, para quem busca a construção de uma alternativa concreta ao avanço da barbárie. Mas também é importante recuperar aquele debate em particular por conta da influência que Marini e FHC ainda exercem sobre setores da esquerda ou progressistas. Nesse campo, as propostas para a resolução dos problemas brasileiros oscilaram entre dois polos, entre os que apostam na via puramente institucional e os que jogam todas as fichas na revolução, predominando os primeiros. Compreender os limites das reflexões de FHC e Ruy Mauro Marini pode nos ajudar a superar as soluções abstratas, seja a pura ideologia do crescimento, o melhorismo divorciado da mudança das estruturas ou uma revolução socialista genérica.

 

Gostaria de fazer alguma consideração adicional?

É importante destacar que Ruy Mauro Marini, militante com um compromisso de vida com o socialismo, foi injustiçado nos termos da controvérsia com FHC. Fernando Henrique, principalmente no artigo que escreveu com José Serra, promoveu deturpações e ataques virulentos a Ruy Mauro, contribuindo tanto para a difusão de leituras equivocadas das ideias do marxista brasileiro quanto para a rejeição de sua obra nos meios acadêmicos e no debate político a partir de então. Nesse sentido, ignorando a réplica de Marini e silenciando, FHC e Serra foram bem sucedidos em seu objetivo de fechar “falsas saídas”, como escreveram, trancando o debate sobre a dependência.  Outro ponto que também é preciso deixar claro é que, em nossa crítica a Marini, não colocamos o problema na proposição do socialismo. O problema não está em propor o socialismo, mas em derivá-lo de uma necessidade lógica, e não a partir das contradições reais e da dinâmica da luta de classes, diluindo as especificidades e processualidade histórica da revolução brasileira. Tanto Marini quanto FHC, nesse sentido, com suas diferentes leituras apriorísticas de O capital de Marx e suas tentativas de interpretar o desenvolvimento brasileiro a partir daquele referencial, ficam reféns de propostas arbitrárias, que, mais do que nunca, precisamos superar se desejamos construir um horizonte para além da progressão da barbárie e da destrutividade do capital.

 

João Paulo de Toledo Camargo Hadler é Professor do Departamento de Ciências Econômicas e Exatas do Instituto Três Rios da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (ITR/UFRRJ) nas áreas de Desenvolvimento Econômico e Social, Economia Brasileira e História Econômica Geral. Graduado, mestre e doutor em Ciências Econômicas pelo Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (IE/Unicamp).

Autor do livro Dependência e subdesenvolvimento: a transnacionalização do capital e a crise do desenvolvimento nacional em Celso Furtado (Alameda Editorial, 2012).