Entrevista com Prof. Dr. Lalo Watanabe Minto - autor do livro "O avesso das evidências"
LAC – Por que a Educação Baseada em Evidências (EBE) tem sido caracterizada como um movimento?
Lalo – Essa é a forma como boa parte da literatura crítica internacional tem se referido à EBE. Por um lado, creio que isso se deve ao fato de que seus próprios defensores se autodefinem dessa maneira, sugerindo um ativismo quase que missionário em prol da educação; por outro lado, há características comuns às várias iniciativas e estratégias utilizadas em todas as partes, o que sugere uma agenda mais ampla, ainda que não homogênea. Para dialogar com essas referências, no livro também falamos em “movimento”. Mas diria que o tema ainda está por ser denominado de maneira mais adequada.
LAC - O livro sugere uma associação entre a EBE e o chamado negacionismo. Poderia falar mais sobre isso?
Lalo - De fato, há essa sugestão e, dada a sua própria natureza, ela não poderia deixar de ser complexa e contraditória. O título, aliás, contém uma ambiguidade: por avesso das evidências pode se pensar no próprio negacionismo, na anticiência; em outro sentido, o avesso de alguma coisa é o seu lado não explícito, aquele que não estamos vendo de imediato. Por definição, aquilo que não é evidente. Foi uma opção para provocar logo de saída as/os leitoras/es; para despertar neles/as uma desconfiança sobre esse discurso hegemônico que se formou em torno do “baseado em evidências”. Proponho, assim, que o fenômeno do negacionismo seja entendido como expressão dessas disputas ideológicas que compõem os conflitos de classe hoje, não como mera disputa entre ciência (verdade) e pseudociência, fake news etc.
LAC - Então, a avaliação é que no campo da educação está ocorrendo um processo desse tipo?
Lalo - Penso que sim. Nesse sentido, a EBE é a um só tempo afirmação e negação: para sustentar sua faceta mais aparente de defesa da “ciência” aplicada à educação, precisa desqualificar e combater todo um acervo de conhecimentos científicos e posicionamentos políticos que têm sido essenciais no campo da educação. A EBE faz isso se ancorando num questionamento sobre os modos de produzir conhecimento em educação, reivindicando para si um determinado uso dos métodos quantitativos, uma conversão em dados de tudo o que é relevante na prática educacional. Por trás dessa generalização, no entanto, estão as políticas educacionais concretas, com os interesses e disputas que as movimentam. Quando alguém diz que o essencial é fazer pesquisa sobre “o que funciona” em educação, só pode estar se referindo a um funcionamento determinado, em condições dadas e produto de políticas e projetos em vigor. Não se faz educação no vazio. Mas a pretensão dos defensores da EBE é apresentar esse conhecimento como algo inquestionável, sem “contaminações” político-ideológicas. Tão simples como se fosse a avaliação dos efeitos de um medicamento sobre o controle de uma doença. Penso, contudo, que é uma ilusão reduzir todo o poder desse discurso à sua lógica autovalorativa, à suposta superioridade epistemológica dos métodos quantitativos; ele é devido a algo mais amplo, que é o poder do consórcio que o fomenta e dissemina.
LAC - Quais são esses grupos, setores, organizações?
Lalo – São grupos e organizações que atuam junto com o Estado e suas políticas, não contra ele, como sugeriria uma certa leitura estagnada da política educacional. Destacaria, em primeiro lugar, os grupos empresariais que têm fomentado e instituído ações no campo da educação. Esta atuação se dá na forma daquilo que um dia se chamou de “responsabilidade social das empresas” e que, mais recentemente, tem sido chamado de “negócios de impacto social”. Outro grupo importante a ser mencionado é o dos organismos internacionais, especialmente de OCDE e Banco Mundial. Não se pode esquecer da grande mídia, que também exerce um papel crucial, pois é por meio dela que a agenda das “evidências” ganha difusão e extensão na sociedade. O que eles defendem é basicamente a mesma agenda que o neoliberalismo introduziu na educação e nas políticas sociais há pelo menos três décadas, mas sempre ajustadas às mudanças conjunturais e cada vez mais dramáticas da crise que temos vivenciado desde então.
LAC - Na base das redes de ensino, dá para dizer que há uma boa aceitação dessas propostas e orientações da EBE?
Lalo - Eu diria que sim, que esta é a forma hegemônica das políticas para a educação no Brasil hoje. Mas é preciso atentar para uma outra dimensão: isso não chega nas escolas e no trabalho docente de forma direta. A EBE atinge os docentes e o trabalho escolar por meio da estratégia de converter a agenda mais geral em protocolos de ação simples, de operacionalização de certas práticas. É um modo de distanciar os momentos de concepção e execução na prática educacional, do alto do sistema ao chão de escola.
Por isso, a concepção de formação de professores dominante entre esses grupos é a de um profissional aligeirado, não crítico, sem autonomia para avaliar e implementar políticas. Ao contrário, o “bom profissional” almejado pela EBE é aquele capaz de se adaptar, de ter resiliência e se “engajar” nessas políticas, mesmo quando elas não o favorecem de modo algum. Precisa ter “protagonismo”, para usar um termo da moda.
No livro afirmei que a estratégia da EBE não é exatamente epistemológica pelo fato de que, embora ela carregue esse revestimento da “ciência” e proponha o discurso do fazer educação com base nesse conhecimento, o que a faz forte é exatamente o oposto disso: fazer chegar nas mãos de quem está na base das redes de ensino a sua agenda para a educação em forma simplificada, aplicável. Em suma, quanto menos “científica” for a formação desses profissionais, mais eficiente será a difusão da agenda da EBE.
LAC - Nesse sentido, então, as evidências são também um modo de dizer que o neoliberalismo está triunfando sobre a educação e a produção de conhecimento nessa área?
Lalo - Exatamente. Essas evidências nada têm que ver com produção de conhecimento. E sim de quem/quais grupos têm a autoridade para dizer o que é evidente ou não e, deste modo, validar suas agendas e interesses. Outro pilar do processo é o do ataque direto que promovem contra as universidades – públicas, principalmente – e a área da educação como um todo, incluindo os seus profissionais. Práticas arraigadas, tradições, saberes acumulados, por um lado, e as pesquisas científicas feitas em programas de pós-graduação e instituições de pesquisa, por outro, seriam antros de pseudo-ciência, de ‘achismos’. Por isso, as Faculdades ou Centros de Educação são eleitos como grandes inimigos da agenda defendida pela EBE, que se afirma negando os conhecimentos que foram produzidos por décadas nessas instituições. Mesmo que este não seja, nem nunca tenha sido, homogêneo, agora trata-se de tirar toda e qualquer legitimidade destes como centros de produção de conhecimento na área de educação. Para retomar a questão inicial, vejo isso como uma expressão do que tem sido chamado de negacionismo, que também poderíamos incluir no rol das ideologias dominantes que vão se tornando cada vez mais “decadentes” em tempos de crise capitalista. A pesquisa em educação está sendo (re)colonizada pelo discurso – e pelos recursos, claro – da EBE. Enfatizo que este não é um processo apenas de disputa pela área da educação como produção de conhecimento, estamos falando da política educacional como um todo.
LAC – Há resistências no âmbito das universidades públicas?
Lalo – Eu diria que há, mas é uma resistência muito ‘administrada’. Se é possível afirmar que estas foram nichos de resistência durante as últimas três décadas de neoliberalismo na educação, não há muitos elementos para indicar que seguirão sendo. Digo isso porque o dramático da agenda da EBE é que ela vai redefinindo os limites dentro dos quais se dão as disputas pela política educacional, estreitando possibilidades. Considerando que essas já eram estreitas devido às particularidades do desenvolvimento histórico brasileiro, assunto que busquei estudar em trabalho anterior, a situação se torna ainda mais dramática. Avaliações padronizadas e em escala, a lógica produtivista e concorrencial da produção científica, do financiamento aos ranqueamentos e premiações, entre tantos outros, já não são mais questionados. Quando muito, se tornaram apenas motivos de lamentação. A crítica da EBE ajuda a compreender como funciona esse campo de luta dentro do qual não se disputa nada do que é fundamental nas políticas para a educação. Campo, aliás, que pode absorver pautas e demandas que são relevantes e representam lutas históricas, mas sem que seu potencial transformador seja acionado. E não faltarão “evidências” para mantê-las em seus devidos lugares, mostrando que tudo está indo bem e se transformando.
LAC - Há mais livros ou trabalhos acadêmicos disponíveis sobre esse assunto no Brasil?
Lalo - Na pesquisa identificamos uma lacuna muito grande. Basicamente, é uma produção restrita a alguns países e disponível especialmente em língua inglesa. O que encontramos no Brasil ainda está muito concentrado em análises pontuais, de temas como a própria formação de professores ou a avaliação. Neste sentido, penso que o livro será de interesse, principalmente, daquelas/es que pensam criticamente sobre a educação, sua forma social e seus modos de transformação no capitalismo contemporâneo. Uma tentativa de levar a um plano mais amplo algumas das críticas que acumulamos ao longo das últimas décadas sobre o neoliberalismo em educação.
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Lalo Watanabe Minto é graduado em ciências econômicas, com mestrado e doutorado na área de Educação. Desde 2014 é professor da Faculdade de Educação da Unicamp, atuando nas áreas de História da Educação e Política Educacional. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas Educação e Crítica Social – GEPECS, fundado em 2018. Lalo também é autor do livro "A Educação da Miséria: particularidade capitalista e educação superior no Brasil" publicado em 2014.