Entrevista com Prof. Dr. Thiago Marques Mandarino, autor do livro "ESTENO E CLIO: críticas à categoria superexploração do trabalho sob a perspectiva da formação nacional"
1) Este livro traz uma série de contribuições de autores clássicos do pensamento social brasileiro, como Caio Prado Júnior, Florestan Fernandes e Celso Furtado. Quais aspectos mais relevantes você destacaria na análise que eles fizeram do processo histórico do subdesenvolvimento brasileiro?
A despeito de algumas distinções, e até divergências, que podem ser apontadas em relação a esses três autores, a meu ver eles permanecem sendo extremamente relevantes pela contribuição prestada à problemática da “formação nacional”. Isto é, eles foram capazes de perceber como o período colonial e escravocrata marca tão profundamente a estrutura material, as relações sociais e a fisionomia moral de nossa sociedade, que ela permanece num inconcluso processo de transição entre colônia e nação, motivo pelo qual nos movimentamos de forma pendular entre a reversão neocolonial e a barbárie.
É tendo a colônia como ponto de partida e a relação com os países desenvolvidos como mediação, que tais autores vão deslindar o processo histórico do subdesenvolvimento e, para além disso, da dependência em si, resultantes de um padrão particular de (sub)desenvolvimento capitalista, contingenciado historicamente pelos interesses de uma burguesia que atua como sócia menor do capital estrangeiro, em movimento de espoliação da periferia, em especial a partir da fase imperialista do capital.
Furtado, por exemplo, em feliz passagem de seu livro “Análise do Modelo Brasileiro”, publicado pela primeira vez em 1972, esclarece que o subdesenvolvimento “[...] apresenta-se como uma situação de dependência estrutural, que se traduz por um horizonte estreito de opções na formulação de objetivos próprios e numa reduzida capacidade de articulação das decisões econômicas tomadas em função desses objetivos”. Constantemente reduzido por seus críticos a um mero reformista, tendo em vista seu afastamento do campo marxiano, Furtado tem contribuição imprescindível para a compreensão do subdesenvolvimento e da dependência, captando as mudanças pelas quais o próprio capitalismo passa e afeta a estrutura e conjuntura nacionais, o que pode ser visto quando se analisa sua obra como um todo, particularmente após o Golpe Civil-Militar de 1964, no Brasil.
Já Caio Prado Júnior estabelece uma relação dialógica entre o “sentido da colonização” e a “revolução brasileira”, fazendo com que a evolução do capitalismo aqui no país fosse influenciada pela atividades gestadas desde o período colonial. Ou seja, a colônia – enquanto empreendimento comercial da metrópole – se organiza material e socialmente voltada para fora, para o atendimento de interesses alheios através da célula colonial: latifúndio, monocultura e trabalho escravo. E o corpo formado por essa célula não foi capaz, ainda, de se desvencilhar do passado e transitar para uma nação autônoma e socialmente menos injusta. Pelo contrário, o capitalismo brasileiro não se desprende dos elementos do passado, daí a funcionalização do setor primário-exportador e do racismo.
Florestan Fernandes também realça a relevância da continuidade das estruturas econômicas e sociais do passado no presente, dando historicidade à dependência e subdesenvolvimento. Mais do que isso, Fernandes percebe que os mecanismos de acumulação primitiva, como a intensa exploração do trabalho, a depredação ambiental, o racismo e a articulação entre os setores arcaicos e modernos, são imanentes ao capitalismo brasileiro, e não resquícios de um passado em vias de superação pelo próprio aprofundamento do desenvolvimento capitalista. Daí ele denominar a revolução burguesa no Brasil de atrasada, uma verdadeira contrarrevolução permanente, de forma a garantir dominação externa e a especialização da nação como fonte de excedente econômico e acumulação de capital para as nações desenvolvidas. Bem como, perceber que no Brasil raça e classe se articulam umbilicalmente, tornando mais difícil a articulação da classe trabalhadora.
Percebe-se, portanto, que os três autores citados acabam por se articular, através da análise da dependência e do subdesenvolvimento, com a problemática da formação nacional e as contingências do capital internacional, num ambiente em que os elementos do passado colonial e escravocrata insistem em perturbar o presente e amesquinhar o futuro.
2) Neste livro, você também se propôs a analisar a obra do Ruy Mauro Marini, chegando a sintetizar suas contribuições e traçando algumas críticas. Qual a sua principal crítica a este autor?
Atualmente, a Teoria Marxista da Dependência (TMD), que tem em Marini seu principal expoente, configura-se como a principal matriz teórica de acadêmicos e pesquisadores de esquerda, que se debruçam sobre a apreensão da realidade brasileira, seus desafios e perspectivas. Dada a relevância do autor, e da corrente em si, eu me debrucei sobre a obra de Marini, particularmente no que tange à categoria da superexploração, fundamental em sua análise sobre a dependência. Grosso modo, que me chamou atenção foi que a escravidão não ocupa lugar de relevância na obra de Marini, donde levanto um questionamento se a força de trabalho é remunerada abaixo do seu valor, ou se a conformação da classe trabalhadora no Brasil, que tem a escravidão como parâmetro, não estabelece um valor irrisório para essa mercadoria. Sendo a força de trabalho mercadoria especial, cujo valor possui um componente histórico-cultural, nos termos de Marx, penso que a constituição da classe trabalhadora, do regime de classes e a dinâmica da luta de classes no país, não podem ficar em segundo plano, sob pena de imposição mecanicista de uma determinada “lei de exploração”, despida de historicidade.
Ademais, o abandono da perspectiva da “formação nacional” - muitas vezes encarada como reformista -, com a consequente desvinculação entre democracia e socialismo, tende a levar a um “congelamento” da história (daí a metáfora com Esteno), enquanto se prospecta um socialismo que parece brotar acima das condições objetivas e subjetivas do terreno sobre o qual se desenrola.
3) Na sua opinião, como Caio Prado Júnior, Florestan Fernandes e Celso Furtado ajudam a compreender a realidade atual do Brasil?
Em minha opinião, esses três autores fornecem um subsídio teórico essencial àqueles que se colocam ao lado da classe trabalhadora, em prol de uma transformação radical dessa sociedade. De maneira geral, ao estabelecerem uma relação entre colonialismo, escravidão e revolução burguesa no Brasil, são capazes de elaborar um arsenal conceitual e categorial a partir do subdesenvolvimento e da dependência bastante preciso, historicamente ancorado (Clio). Isto é, são autores que percebem a problemática da “formação nacional” como a base material e subjetiva sobre a qual se erguem a economia, a sociedade, a política e a cultura nacionais, dando maior concretude às análises de dependência e do padrão de exploração da classe trabalhadora no país. Bem como, percebendo a relação dialética entre colônia e nação, esses três autores permitem que nós enxerguemos a indissociabilidade, na periferia do sistema, entre nação, democracia e socialismo.
Peço permissão para finalizar com uma passagem que consta nas páginas finais do livro, com a expectativa de que possa instigar a leitura e provocar o debate:
“Tomar como base interpretativa a perspectiva da formação nacional, que pensa uma revolução democrática e nacional para superar a dependência e o subdesenvolvimento, não é enveredar para o reformismo ou anacronismo. Diferentemente, ver a revolução democrática e nacional como anacrônica é conceber o capitalismo periférico como dependente, mas ainda acreditar, contraditoriamente, que são possíveis reformas substanciais dentro da ordem. É perceber, no plano das ideias, a inviabilidade contemporânea de algumas alterações positivas reais e imediatas da realidade brasileira, mas acabar refém de um projeto de socialismo que não aponta táticas que colocam em xeque exatamente as bases do capitalismo dependente. Em suma, é decorrência da contradição de uma análise que, a despeito dos acertos nas intenções, se descola da história e, por consequência, corre grandes riscos de se perder num voluntarismo que não se cumpre”.
Thiago Marques Mandarino é Professor do Departamento de Ciências Econômicas da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM). As áreas de estudo e publicações científicas centram-se nas temáticas de: Escravidão, Racismo, Transição do Trabalho Escravo ao Trabalho “Livre” no Brasil, Desenvolvimento e Subdesenvolvimento, Dependência, Formação Nacional e Economia Brasileira.